domingo, 31 de maio de 2015

Sincronicidade discutida através do filme UM CONTO CHINÊS

Flora Bojunga Mattos[1]

O filme argentino de 2011, ‘Un cuento chino’ com roteiro e direção de Sebastián Borensztein – inspirado em um relato esdrúxulo, no entanto verídico e acontecido na Rússia em 2008[2] - narra a história, também insólita, sobre a relação de um comerciante portenho de vida monótona, fechado em si, mesquinho, amargurado e a intensa convivência com um jovem chinês imigrante que leva para a sua casa e o ajuda na busca do tio que mora na Argentina.
O personagem principal Roberto, dono de uma pequena ferragem, é quem nos conduz na experiência de descongelamento do modelo de pensar linear – predominante em nossa sociedade contemporânea ocidental – ao acompanharmos o seu enfrentamento cotidiano com o inesperado encontro e a coexistência com o chinês. O personagem coadjuvante Jun, no papel do imigrante asiático, nos envolve no modelo oriental de se comportar e nos apresenta sem impor, com a aparência de certa passividade, a possibilidade de ampliarmos a visão habitual, a ponto de permitir a virada para uma atitude diferente de lidar com a vida, principalmente no que diz respeito a dar mais espaço para o afeto.
No hábito de colecionar histórias inusitadas e de se idealizar como protagonista nelas, Roberto não poderia imaginar que através desse hobby construía, por uma vertente latente e silenciosa – de qualidade arquetípica –, um modo de agir que o tiraria da rotina rígida e solitária que o prendia ao passado. Tal qual o modelo geral da ciência, Roberto mantinha como única realidade a consciência de uma tradição racional, embasando-se em acontecimentos de sua história pessoal, sem o saber, referenciava a causa e o efeito, sendo justamente esse o questionamento com que vem se deparando o novo paradigma científico difundido popularmente desde a segunda década do século XX pela Física Quântica. No entanto, anterior a isso, temos de considerar a experiência de C. G. Jung nos primeiros anos de 1900, testando e comprovando a abrangência e a materialidade de nosso psiquismo. Ele nos provou e o mundo ocidental absorveu a existência do inconsciente coletivo como base da psique na formação da consciência de todo o ser humano, conceito esse profundo (arquetípico) e fundamental na Psicologia Analítica que enfatiza a nossa relação e interconexão com a criação como um todo. Através dessas perspectivas, da Psicologia Analítica e da Física Quântica, podemos ampliar o conhecimento da realidade considerando os eventos sincronísticos[3]. O modo de perceber a realidade se alarga da simplicidade do tratamento adotado pela causalidade, de um evento ser a causa de outro, para a complexidade paradoxal e complementar, que se entenda como um conjunto significativo e conectado de fatos, que nos conduz a seu sentido. Jung denominou de sincronicidade a esse modo de perceber acontecimentos acausais interligados entre si. A essa mesma realidade o físico Capra nomeou de orgânica. Os chineses há milênios olham os acontecimentos em conjunto, como um campo de sinais que nos falam de um significado a ser evidenciado.
O personagem desenvolvido através do asiático Jun, subvertendo a ideia pré-estabelecida em nosso contexto, nos possibilita descobrir o modo de pensar sincronístico, que é a maneira na qual podemos apreender da filosofia chinesa. Culturalmente a China nos ensina a perceber a configuração do momento, o que possibilitaria o alargamento de nossa consciência, mas ainda tendemos a nos prender aos acontecimentos isoladamente sem alcançar o estabelecimento de uma conexão do que ocorre ao redor do eu pessoal.
A partir do momento em que Roberto sabe que Jun é o protagonista de uma daquelas histórias que colecionava e arquivava há anos, amplia o seu conhecimento e a tensão é relaxada, constelando a possibilidade de ocorrer mudanças na vida de ambos. Então a narrativa se encaminha para a complexidade e deixa de lado a racionalidade plana dos acontecimentos bidimensionais, chapada no cotidiano, um modelo rígido de pensar guiado por um antes e um depois. É nesse instante que se abre a probabilidade do raciocínio envolver a emoção.
No modo causal de pensar, além do movimento mental ser linear: A causa B; B causa C; C causa D; e assim por diante; no geral tende a separar os eventos físicos dos eventos psicológicos. A ideia prevalente até o século XIX, por exemplo, era de que as causas físicas terem efeitos apenas físicos, portanto as causas psíquicas, ou não visíveis, somente poderiam apresentar efeitos psicológicos.
Atualmente nos permitimos fazer interações entre o psíquico ocasionar um evento físico e vice-versa. Pelo menos essa tem sido a discussão a que se propõe a medicina psicossomática, comprovando o fato de as pessoas apresentarem sintomas e até doenças, sendo a manifestação orgânica uma reação a emoções fortes vivenciadas, por exemplo, os desmaios, pressão alta, asma, diabetes e até infartos, entre outros tantos acontecimentos que vão mesclando o fisiológico e o psicológico. Ainda assim, a causa é vista antes do seu efeito, prevalecendo uma ideia da linearidade do tempo, embasada no antes e no depois, com o efeito vir sempre depois de algo ocorrido. Nesse caso, ou nesse tipo de medicina, ainda falta a visão da simultaneidade dos fatos no tempo.
O importante a ressaltar é do filme UM CONTO CHINÊS[4] se prestar à discussão desses dois tipos de pensar e privilegiar o fato de, mais do que uma coisa ser o fator causador de outra, ser a abertura para ir além da forma tradicional explicativa. A narrativa nos permite a possibilidade de enxergar os fatos conjuntamente, dando-lhes um significado que interfere em um dado momento na vida dos personagens. Exageraria até afirmar que o filme adota o modo de pensar sincronístico, como foi sempre desenvolvido pela filosofia chinesa – de juntar fatos e não separá-los –, provocando se buscar o sentido de um acontecimento. Não se importa com a distinção entre os eventos psíquicos e físicos (até porque nem sabemos onde um começa e o outro termina em verdade), mas reúne sem distinção acontecimentos internos e externos, apresentados pela narrativa do conto, pois de fato é desse modo que acontece na vida de todas as pessoas, embora não tenhamos o hábito de percebê-las assim, no entanto, só assim conseguiremos deixar emergir o sentido.
O ponto a salientar é de a vida estar repleta de acontecimentos espontâneos e suas simultaneidades no tempo e ainda nos prendermos estritamente a fatos explicativos, compartimentados em excesso, que levam ao desconhecimento e empobrecimento do sentido. Num tipo de atitude assim, abandonando inclusive a percepção de como nos sentimos em um dado momento – pelo fato de não computarmos a emoção – deixamo-nos ofuscar pela objetividade da razão, como se ela pudesse ser o centro norteador da compreensão, então perdemos de captar o entorno e de fazer relações que nos levariam a trazer um conhecimento mais amplo. A atenção e a concentração ao redor, incluindo os detalhes, pelo fato de olharmos para os acontecimentos de nossa vida interior em conjunto com os fatos externos que nos cerca em um dado momento e tudo o que nos for possível abarcar de algo que possa estar relacionado, nos remeteria a seguir o caminho de um sentido que se evidencia, mas que precisa ser reconhecido.
Para aprofundar o desenvolvimento da ideia sobre sincronicidade, a dica é ler as obras de C. G. Jung, principalmente o volume VIII sobre SINCRONICIDADE: UM PRINCÍPIO DE CONEXÕES ACAUSAIS, além do livro de M-L von Franz, ADVINHAÇÃO E SINCRONIDADE: a Psicologia da probabilidade significativa.

[1] Psicoterapeuta de abordagem analítica junguiana no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br, desde 2005 no projeto de CINETERAPIA, florabm@gmail.com .
[2] Ver relato no periódico Komsomolskaja Prawda que traz a notícia da polícia Russa detectar um grupo de delinquentes que roubava gado e o transportava via aérea. Num desses eventos as vacas foram jogadas do alto ao vazio, afundando uma embarcação pesqueira japonesa, numa verdadeira chuva de vacas, na costa russa.
[3] Fatos espontâneos acausais que acontecem de modo simultâneo em um dado momento, de qualidade arquetípica, e que possuem entre si uma relação significativa e nos conduzem a um sentido.
[4] Filme apresentado na sessão de CINETERAPIA do dia 19 de maio de 2015 no Espaço Arte-Ciência, Porto Alegre/RS - Brasil.