sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A REABILITAÇÃO DA FUNÇÃO SENTIMENTO POR C. G. JUNG - M-L von Franz (p. 77-91)



*Tradução para o português por Flora Bojunga Mattos e Conceição Soares Beltrão, revisado no alemão por Elis Souza, revisão geral Elisa Freitas Machado.


Quando Jung tinha de 21 a 23 anos e estudava Medicina deu 4 conferências para seus colegas na Associação de Estudantes de Zofingia na Basiléia. Em uma delas, em 1897, cita a seguinte passagem da ‘psicologia’ de Kant: “A questão principal é sempre a moral; esta é o sagrado e inviolável que devemos proteger, e esta é também o fundamento e meta de todas as nossas especulações e buscas. Todas as especulações metafísicas surgem daí. Deus e o ‘outro mundo” é o único intuito de todas as nossas investigações filosóficas e, se os conceitos de Deus e de ‘outro mundo’ não se relacionam com a moral, não servem para nada.”

Sendo assim – depois de um agudo ataque ao materialismo em geral, prossegue Jung: “Se deve exigir a moral em primeiro lugar como ’Revolução Total’ à ciência e a suas representantes, através de certas verdades transcendentes (...). Se deve, por exemplo, ensinar nos institutos de fisiologia, lugar em que intencionalmente se debilita o juízo moral dos estudantes, ante experimentos vergonhosos, bárbaros, mediante torturas cruéis de animais que são incompatíveis à humanidade – em tais institutos, digo, se deve ensinar que nenhuma verdade que seja investigada por meios imorais pode se converter em justificação moral de existência. (O grifo é meu).

Por isso Jung se volta em direção a Kant e destaca sua idéia de que só a crença em realidades que se encontram mais adiante do toscamente material pode garantir uma atitude moral da vida do homem. O que eu quero salientar mediante estas citações é isto: Jung era em si mesmo um tipo pensamento introvertido, mas até nesta conferência de sua juventude expressa seu sentimento. Nunca foi um intelectual frio. Desde essa conferência foram transcorridos 84 anos, e onde estamos hoje com respeito a este problema?

A tortura cruel de animais tem se multiplicado por mil, não só nos laboratórios científicos, mas hoje em dia também na agricultura, e se tem estendido conseqüentemente à tortura de incontáveis homens em todo o mundo. Militares peritos contam hoje com sangue frio como podem ser exterminados em uma guerra atômica milhões de homens. Concordo – é a sua profissão; mas não se observa que estejam perturbados ou deprimidos quando devem fazer estes cálculos. Porém estas coisas são conhecidas, de modo que me volto, preferivelmente, ao que está mais próximo, isto é, ao nosso próprio âmbito: a psicologia. Nas universidades impera a estatística, só são recebidas como sérias as afirmações ‘duras’, isto é, estatísticas. Contudo, durante muito tempo Jung tem posto o dedo na chaga: as estatísticas descrevem somente uma imagem intelectual-abstrata do objeto investigado, não sua realidade: quando afirmamos, por exemplo, que em média a pedra pesa ½ kg dentre um monte de pedras e não encontramos em realidade quase nenhuma pedra que pese exatamente ½ kg! Assim construímos um modelo abstrato da realidade e depois o confundimos com a realidade concreta, a que, todavia, considerada com mais precisão, consiste em mera exceção. Todas as ciências fundadas matematicamente vão por esse caminho; e porque Jung não participava dele o acusavam de ser ‘acientífico’ – talvez fosse isto até verdadeiro, porém Jung é mais realista. Na terapia Jung se opunha ao antigo vestuário branco do médico; que trata aos pacientes como a um objeto impessoal – ele se punha à frente de cada paciente com seu próprio sentimento pessoal – fosse esse positivo ou negativo – e fazia de cada hora de análise um encontro pessoal. Discípulos de Jung, que uma ou outra vez introduzem de modo ilegítimo procedimentos técnicos como a pretendida discussão sobre a transferência, têm retrocedido sensivelmente a uma forma de pensamento pré-junguiana. Isto se refere em especial ao chamado problema da transferência, isto é, precisamente a relação sentimental, que entretanto, é tratada como uma grandeza manipulável.

Em uma carta Jung escreve expressamente: “A dissolução da transferência muitas vezes consiste em cessar de descrever a natureza da relação como ‘transferência’. Esta designação rebaixa a relação para uma mera projeção, a qual ela não é. ‘Transferência’ consiste na ilusão de sua singularidade, quando vista de um ponto de vista coletivo e convencional. ‘Ser único’ jaz única e simplesmente na relação entre pessoas individuadas, as quais não têm outros relacionamentos exceto individuais, isto é, pessoas únicas”.[1] Por isso – assim se deve concluir – a palavra transferência devia ser aplicada quando intencionalmente se procura de algum modo desvalorizar as projeções ilusórias, porém não na relação sentimental que se constrói no curso do tratamento.

A amabilidade forçada trata-se, naturalmente, de uma falsa virtude, tão falsa quanto a que certos analistas mostram a seus pacientes – ela segue o antigo papel da prática médica e serve como meio de camuflagem para não se ter que expressar os sentimentos genuínos e verdadeiros. Sentimentos que, freqüentemente, não são em absoluto de todo amáveis, isto é, que tentam, desse modo, iludir rechaços e confrontações. Esta amabilidade-persona é derivada do sentimentalismo cristão, ao qual voltarei mais adiante.

Mas primeiro voltemos ao problema das ciências: nosso mundo científico moderno e tecnológico e sua forma de vida têm sido construídos por cientistas cuja função principal é o pensamento extrovertido ou introvertido, também acoplado à percepção extrovertida ou introvertida. Na Física, por exemplo, se destacam os introvertidos como Einstein, Bohr, Pauli, etc., na física teórica; os extrovertidos, como por exemplo, Wernher Von Braun, na Física experimental. A função da intuição é totalmente rechaçada, porque se necessita de idéias especulativas a fim de fazer novos modelos de pensamento. Porém o sentimento não está em nenhuma parte e está expresso, na maioria das vezes, somente em frases infantis bem intencionadas que conte todas a palavrinha ‘deveria’. E com exceção de Niels Bohr; todos os físicos mencionados colaboraram ou quiseram colaborar na fabricação da bomba atômica! Hoje existe entre os físicos nos Estados Unidos uma tendência à filosofia hinduísta, que por certo é antimaterialista, porém considera a vida do indivíduo um nada.

Quão inumana tornou-se a medicina moderna, não se necessita nenhuma explicação. Os periódicos estão cheios disso, porém quase nada sucede. Por isso o trabalho solitário e pioneiro da Dra. Elisabeth Kübler-Ross, deu um passo na direção correta.

Outro âmbito no qual nosso sentimento, lamentavelmente, funciona mal é na chamada Ajuda para o Desenvolvimento. O médico Benno Glauser publicou a respeito um notável artigo no periódico suíço da Cruz Vermelha.[2] Nele desmascara como nós, povos de outras culturas, tentamos ajudar e, ao mesmo tempo, pretendemos impor-lhes nossas religiões ou pontos de vista científicos e, desse modo, destruímos seus próprios fundamentos vitais, espirituais e religiosos. Nossos médicos, missioneiros, arquitetos e agrônomos partem todos da premissa de que sabem o que é verdadeiro ou falso para os outros e se vêem, ocasionalmente, decepcionados e ressentidos se estes povos rechaçam a ajuda deles com apatia, resistência e o chamado desagrado. Eu gostaria de citar do artigo de Glauser, o quê um pai-índio no Paraguai disse a uma auxiliar médica:[3] “Para nós, pai, a saúde é um estado ao que chamamos ‘tekoresai’; e para que esta ‘condição de saúde plena’ seja possível, deve haver diversas coisas e situações; todas elas pertencem a ‘condição de saúde plena’ e o constituem: as plantas e árvores, tomadas unicamente como meios curativos; mas também todas as árvores e plantas em seu conjunto; as palavras verdadeiras e equilibradas ou a boa alimentação; o não-passar-por-cima-dos-outros; a selva virgem, a harmonia, a comunidade da aldeia; o falar e dialogar com os outros; a conservação e proteção de nossa ‘forma de ser’; o viver nossa própria cultura e a forma de ser; o sentimento da força, que nos é dada através de todas as coisas que tenho mencionado; a união de nossa comunidade; o viver tranqüilos e em segurança em nossa terra; o viver juntos em família e na comunidade aldeã; as festas. – Então, vêm vocês brancos e nos fazem dependentes do dinheiro e de outras coisas materiais: isto destrói nossa ‘condição de saúde plena’. Vocês dizem coisas más, falam mal dos outros; se apropriam de nossa terra, não ter terra quer dizer não comer nada, não comer nada quer dizer enfermidade. E, finalmente, buscando em seus bolsos, vocês sacam uma pílula branca e querem fazer-nos crer que se tomarmos essa pílula ali está a saúde, que ela seria a saúde...”

Todo o nosso fazer destrutivo consiste, como salienta Glauser, em uma fundamental falta de respeito pelos outros homens e pelos seus valores culturais sentimentais diferentes dos nossos – em outras palavras, numa falta do sentimento genuíno diferenciado. Conhecemos a fundo muito bem esses efeitos catastróficos de nosso proceder e, também, sabemos que existe um ódio crescente de outras nações em relação à raça branca, porém, em troca, não parece que estivéramos dispostos a fazer algo para resistir a isto.

Todavia, não é necessário ir até povos tão distantes, porque a mesma atitude, a falta de sentimento, também predomina entre nós de um grupo para o outro. Os arquitetos de nossa cidade e nossa região, por exemplo, projetam em suas pranchetas de desenho planos da cidade e das ruas que depois vão destruir a felicidade da vida de incontáveis seres. Eles pensam com total sangue frio que se um agricultor expropriado recebe uma indenização adequada em dinheiro ou em terras a questão fica solucionada. Mas não leva em conta, em absoluto, que talvez o que este camponês ame, o seu pedaço particular de terra. Tiramos os velhos de suas casas, de seus bairros, onde eles têm gatos e dão de comer aos pássaros, e depois nos admiramos quando subitamente eles morrem em suas novas e assim chamadas higiênicas moradas, nas quais não há gatos nem pássaros que emporcalham.

Que devemos fazer então? Transformar nossa política e, portanto, nossa legislação? Acaso a última trata publicamente deste problema? Erich Neumann quis colocar de uma forma militante, em seu livro ‘Psicologia Profunda e Nova Ética’, novas regras morais; seu livro causou impressão, mas no fundo não produziu nenhum resultado. Evidentemente, não é esse o meio de abordar o problema. Creio que Jung de 22 anos pôs o dedo na chaga, quer dizer, que primeiro devemos reconhecer a ‘Realidade da Alma’, isto é, do Inconsciente e, desse modo, também a realidade da imagem divina do Si Mesmo e uma realidade transmaterial, antes que nos aferremos a alguma outra coisa. Deixem-me dar um exemplo: eu dei, não faz muito, uma conferência na Alemanha sobre sonhos de moribundos, os quais parecem sugerir uma possível vida depois da morte. Depois da conferência veio a mim uma enfermeira com os olhos cheios de lágrimas e disse: “O que você disse não pode nem deve estar certo, pois do contrário eu seria responsável por coisas tão horríveis.” Ela não disse o que era, mas evidentemente havia cuidado mal de pacientes moribundos, – talvez até lhes houvesse roubado – na crença de que eles já não estivessem mais conscientes, de modo que sua ação já não teria más conseqüências. Mas, naturalmente, e se a alma deles estava lá? Seria outra coisa. Não é por acaso que a Dra. Kübler-Ross começou a se ocupar do espiritismo, segundo ouvi dizer. Pela lógica é o passo seguinte no seu trabalho com moribundos, quando não se está persuadido, como nós, pela realidade do inconsciente. Seu sentimento a conduz, conseqüentemente, nesta direção.

Em religiões de todas as épocas existiu e existe a representação de um deus ou de deusas e de outro ‘Mundo de Mais Além’, de vida imaterial, e só isso pode embasar o fundamento de uma ética mais real. “O Desvio do Numen’, escreve por isso Jung “parece ser entendido universalmente como o pior e mais original pecado.”[4]

E ao inverso, a essência de toda ética está baseada no fenômeno da consciência, isto é, na relação sentimental entre a ‘pessoa humana e Deus’[5] ou o arquétipo do Si Mesmo.

Em troca o que nós vivenciamos em toda parte no mundo toscamente material é o padecimento injusto e o triunfo da injustiça. Através da honradez, se a colocamos em prática, somos tidos por ingênuo-tontos. O sofrimento inocente dos primeiros mártires cristãos exerceu pelo menos um efeito sobre a massa e converteu muitos ao cristianismo. Mas, quem se lembra hoje do nome daquele jovem professor da escola alemã que foi voluntariamente à câmera de gás com seus alunos judeus para confortá-los? O Que é que provoca os sofrimentos dos descendentes e valentes cristãos na Rússia? Nada! Lemos a respeito deles nos jornais e, de certa forma, o fazemos com um resignado encolhimento de ombros.

A Dra. Liliane Frey publicou o sonho de um paciente moribundo cuja vida havia sido uma sucessão de fracassos exteriores. Ele sonhou:[6] “Uma voz... me disse: teu trabalho e o sofrimento que conscientemente atravessaste, redimiu a cem gerações antes de ti e iluminará a cem gerações depois de ti.”

Também aqui é a existência do mundo do Além o decisivamente importante. Em um mundo só material não existe consolo algum para este homem.

Mas porque isso, especialmente, teria a ver com a função sentimento? Não é por acaso o reconhecimento de uma realidade psíquica importante para as quatro funções da consciência? Evidentemente, “se a ética dos valores é, sobretudo, um produto da função sentimento altamente diferenciada”,[7] como escreveu Jung, ela exige certa inteligência, sobre a qual voltarei mais adiante. Mas, em todo caso, a ética não pode existir sem sentimentos diferenciados, de outro modo ela se converteria em um código rígido de regras de conduta, isto é, um puro dever coletivo. Todos podem experimentar isso, quando, por exemplo, uma simples ordem policial é aplicada esquematicamente, ou em grande escala podemos ver como funciona o aparato estatal na Rússia.

Mas agora alguém poderia objetar: onde estão então os tipos sentimento, que concretamente devem existir em grande número em todos os povos? Porque eles não compensam essa carência? Aqui devemos fazer uma diferença entre a existência de tipos sentimento e o estilo coletivo da época, e a atitude coletiva de uma cultura. Naturalmente, teremos muitos tipos sentimento com sentimento diferenciado entre nós, mas a moda, o espírito coletivo de proceder e valorar, não reconhece o sentimento. Isso debilita a influência do sentimento até nos tipos sentimento. Além do mais, a função inferior de um tipo sentimento – como sabemos – é o pensar, o qual terá por isso freqüentemente as tendências inferiores da época: na nossa, o materialismo e intelectualismo baratos. Assim vemos, por exemplo, em mais de uma cultura latina, uma preferência pela ideologia comunista em sua forma mais estúpida, enquanto o povo mesmo é bem carente de sentimentos e de relação, como o são vários povos não latinos. Penso aqui na Espanha, Itália e alguns países Sul Americanos. O que, sobretudo, resulta tão mal é que o espírito da época (Zeitgeist) oficial desvaloriza o sentimento. Freqüentemente escutamos o juízo (por exemplo, contra os adversários da energia atômica) que eles, ‘quando solicitados só apresentam argumentos sentimentais em vez de fundamentos racionais’, e, por certo, com o sentido implícito de que um argumento sentimental é eo ipso sem sentido. De forma parecida isto se mostra nos alvoroços armados por jovens revoltosos. Algumas bem intencionadas tratativas intentam, uma e outra vez, entrar em contato com os jovens rebeldes de forma “razoável” (entre aspas!) – totalmente sem resultado, porque estes jovens são movidos por sentimentos completamente obscuros, em sua maior parte negativos, que não se podem traduzir em uma linguagem racional ou sentimental. Muitos governos propõem um programa qualificado de ajuda de grande alcance para jovens sem trabalho, a fim de possibilitar-lhes uma instrução posterior. Isso é seguramente bom e justo, mas ajudará o suficiente? Deixará de rebelar-se um jovem sem trabalho se aprende um pouquinho mais de eletrônica? Sabemos que os soviets pagam em parte a esses rebeldes, mas é suficiente que lhes demos também dinheiro? Não creio muito que possamos corrigi-los, se nós mesmos permanecermos em nível do materialismo racional; no que este seja totalmente falso; só é falso quando cremos que isso é tudo. Jung escreveu em uma carta[8] que nos tornamos materialistas “unilateralmente intelectualistas e racionalistas”, e que esquecemos totalmente que há ainda outros fatores que não se deixam fluir pela retidão da razão e do entendimento. Por isso vemos por toda parte inflamar-se uma emocionalidade mística, que desde a Idade Média se havia dado por desaparecida. Esta é uma compensação ao progresso técnico excessivamente rápido.

Conseqüentemente necessitamos mais que entendimento e razão, porque as últimas irritam mais ainda os jovens; deveríamos poder lhes oferecer uma nova visão de conjunto, criadora do ser e, por certo, não materialista como totalidade – segundo minha opinião, deveríamos poder estabelecer uma relação com o inconsciente como uma realidade transcendente, relação que não só deveria ser feita com o entendimento, senão também com o sentimento e a emoção. O que acontece com as numerosas formas da Mística Oriental que estão tão em moda entre nós no Ocidente? Também elas chegaram para nós demasiado fáceis e outra vez como algo intelectual, em última instância, elas se aplicam ao pensar e à intuição ou, como formas de Yoga, à percepção. Estes ensinamentos, como Jung pôs em relevo, propriamente são, na verdade, sistemas teológicos que tem pouco ou, absolutamente, não levam em conta o indivíduo e sua relação com o Divino. “Por demasiada sabedoria oriental” escreve ele[9], (...) “a experiência direta é substituída por um excessivo conhecimento oriental”, escreveu ele, “e, assim, fica obstruído o acesso à psicologia. É compreensível, porém, que as pessoas tentem primeiro os caminhos já percorridos, antes que possam decidir-se a andar pelo caminho ainda não trilhado”.

E em uma carta a Miguel Serrano[10] escreve mais: “O senhor escolheu dois bons representantes do Oriente e Ocidente. Krishnamurti é totalmente irracional e deixa a solução para a quietude, isto é, deixa-a como fazendo parte da mãe natureza. Toynbee, por outro lado, acredita em fazer e moldar opiniões. Nenhum dos dois acredita no florescimento e desdobramento do indivíduo como um experimento e uma obra duvidosa e desconcertante do Deus vivo. A ele devemos emprestar nossos olhos, ouvidos e nosso espírito perspicaz (...)” (porque Deus em nós quer ter lugar na consciência). “Nós precisamos urgentemente de uma verdade ou de uma autocompreensão semelhante à do Antigo Egito, como eu a encontrei ainda viva entre os taos-pueblo. O chefe de seu culto, o velho Ochwiäh Biano (lago da montanha), me disse: ‘Nós somos o povo que vive no teto do mundo, nós somos os filhos do Sol que é nosso pai. Nós o ajudamos todo dia a nascer (...). Não o fazemos só por nós, mas também por todos os americanos. Por isso não deveriam interferir em nossa religião. Mas se continuarem a fazê-lo (por meio de missionários) e nos perturbarem, então verão que em dez anos o Sol não mais se levantará.’ Ele supõe corretamente que o dia, a luz, a consciência e o sentido deles vão morrer se forem destruídos pela estreiteza mental do racionalismo americano, e o mesmo acontecerá ao mundo todo se submetido a tal tratamento.”

Em outro lugar[11] Jung salienta, que quando tomamos sem crítica os ensinamentos do Oriente, freqüentemente essas idéias são mais importantes que a vida interior, a esperança e o êxtase liberador da experiência interior se extraviam nesse esforço predominantemente intelectual, de modo que, em vez da experiência original, temos uma imitação exercida como método.

Muitos métodos orientais inclusive reprimem o inconsciente em vez de estabelecer uma relação com ele.[12] Tudo isto deveria bastar para mostrar que na visão de Jung não pode haver nenhuma ética verdadeira sem a experiência original viva do Divino. Não é pela adesão a alguma doutrina teológica e outras. A experiência original só pode ser experimentada pelo indivíduo – o que não é experimentado nunca é verdadeiramente real para mim, pode existir em minha cabeça como idéia ou opinião, mas não é uma experiência. Uma coisa é, que eu conheça só por livros que existem os elefantes, e outra, que eu tenha visto, cheirado, tocado em um deles. Só essa é uma verdadeira experiência, se eu mesmo experimento algo com todas as funções, incluindo o sentimento.

Então, como ficamos com a vida cristã do amor ao próximo – não é ela no fundo aquilo que buscamos e ao que deveríamos retornar? Seguramente o Cristianismo, a princípio, era uma experiência totalmente sentimental. Os primeiros cristãos eram em sua maior parte escravos e homens incultos, e o amor pelos seus irmãos ou irmãs criaram um laço frutífero entre si. Muitos cristãos primitivos até se gabavam de não ser intelectuais. Mas de repente o doutrinarismo teológico, as disputas dogmáticas e o seguimento de crenças estrangeiras ganharam a dianteira e o sobrepuseram ao amor ao próximo universal que foi restringido pelo princípio de poder; aquele arqui-inimigo de todas as formas de Amor.

O slogan marxista da solidariedade internacional é em mais de um aspecto um retrocesso ao ideal de amor dos primeiros Cristãos, mas sem fundamentação no lado transcendente, senão em relação ao lado unicamente material da existência.

Em nossa época todas as nações da Terra andam as voltas com a ordem técnica, econômica e intelectual e, por isso, necessitamos especialmente do sentimento na sociedade em geral. Até isso é um dos triunfos da propaganda comunista.[13] A partir do sistema soviético muito de seus adeptos têm se iludido a este respeito, muitos se voltam a um eurocomunismo e coisas parecidas. Na América do Sul Che Guevara vem sendo celebrado freqüentemente, ao pé da letra, como uma espécie de herói do amor, especialmente pelas mulheres. Apesar de todas as decepções, numerosos representantes eclesiásticos, de todas as confissões, se voltam para o marxismo, porque sentem que ele se encontra ligado ao ideal do amor e próximo do cristianismo primitivo. Mas onde o comunismo teve êxito pelo poder, obteve resultados contrários. Jung escreve[14]: “Os sistemas coletivos, denominados ‘partidos políticos’ ou Estado, atuam destrutivamente sobre as relações humanas. Mas podem também ser facilmente destruídos, porque os indivíduos ainda estão num estágio de inconsciência, que não consegue assimilar o estupendo crescimento e a fusão das massas. Como o senhor sabe, o maior esforço dos estados totalitários destina-se a minar as relações pessoais através do medo e da desconfiança para que surja uma massa atomizada onde a alma humana seja completamente sufocada. Até mesmo a relação entre pais e filhos, que é a mais íntima e natural, é rompida pelo Estado. (...) A única possibilidade de deter esse processo é o desenvolvimento da consciência do indivíduo. Assim torna-se imune à sedução das organizações coletivas. Só assim fica preservada sua alma viva, pois ela se baseia no relacionamento humano.[15] O acento deve cair sobre a personificação consciente e não sobre a organização estatal.” Em outra parte:[16] “(...) a solidariedade e a vida comum da humanidade são uma das questões básicas da existência. Mas a questão se complica, pois o indivíduo também deve apresentar-se como autônomo, o que só é possível se a comunidade possui apenas valor relativo. Caso contrário ela submerge e até destrói o indivíduo e, então, ela própria deixa de existir. Em outras palavras: uma verdadeira comunidade só pode ser formada por indivíduos autônomos, que são seres sociais só até certo ponto. Só eles podem realizar a vontade de Deus colocada em cada um de nós.” (comunidade genuína necessita “compreensão psicológica e identificação nos distintos pontos de vista”).

Muitos jovens, principalmente de orientação esquerda, experimentam hoje uma vida em comunidade, tentando de maneira louvável uma nova forma de relação social. Mas, pelo que eu tenho visto, para concluir, tais comunidades se separam quase sempre devido a suas lutas internas. O sentimento entusiasta de uma aceitação amorosa do outro não consegue se sustentar quando se trata da vida cotidiana, porque é demasiado idealista e sentimentalmente indiferenciado. Por conseguinte, os afetos explosivos dissolvem e terminam a comunidade. Mas afetos e emoções são sinais de um sentimento indiferenciado. Eu analisei alguns jovens que viviam em comunidades e acontecia, sobretudo, como em outras pessoas também com respeito a seus relacionamentos sentimentais, na maioria dos casos eles abandonavam a comunidade original e em lugar dela criavam um círculo de amigos pessoais. Hoje muitos fazem uma forma de culto dos afetos e emoções: positivos, na forma de acontecimentos musicais, ou negativos, mediante disputas. Os que disputam crêem que fazendo isso expressam sentimentos, mas isso não é, contudo, totalmente verdadeiro, pois os sentimentos apenas estão em um estado primitivo contaminados pelas emoções; em contrapartida o sentimento diferenciado não é em absoluto emocional.[17] Cuidar das emoções e afetos conscientemente é algo doentio e conduzem finalmente à destruição. Mas o que não está certo então com o amor ao próximo cristão e sua continuação mundano-materialista no Socialismo e Comunismo?[18] Seu aspecto positivo é, geralmente, certa empatia humana que nos une com todos os homens, mas seu aspecto negativo é o sentimentalismo emocional infantil, o qual não é outra coisa senão o reverso da brutalidade.[19] Enquanto nossas beatas tricotavam calcinhas de lã para os negrinhos desnudos, os comerciantes de escravos, que eram da mesma religião, destruíam as vidas de milhares de negros. Isso só serve para mostrar que sentimentalismo e brutalidade são os dois lados de uma mesma moeda. Portanto nós não podemos regredir a tal amor ao próximo infantilizado, mas sim devemos retornar a ele como um amor humano de forma geral, em um nível mais elevado. Como seria isso mais ou menos? Jung o chama como uma nova forma de Eros (amor) que tem um efeito totalizador, curativo e é a irradiação da personalidade individualizada.[20]

Este Eros é, a propósito, um princípio feminino.[21] Esta forma de amor foi simbolizada na tradição alquímica por uma imagem estranha: o sangue de cor rosado que transpira da pedra do sábio ou ‘Homo putissimus’ e que cura todos os homens. Homo putissimus significa o ser humano mais autêntico, o homem mais puro ou o mais genuíno (não mesclado), em contraposição a Cristo, o homo puríssimo, o homem mais puro.[22] Ele é um homem que conhece todo o humano e não é deturpado por nenhuma influência ou mistura desconhecida. Ele libertará o mundo do mal no final dos tempos através do sangue rosado. Isso simboliza certa classe de Eros, que unifica tanto o único quanto os muitos e faz um todo, deve compensar a falta de sentimento da nossa época, uma forma de amor que está ligada com um autoconhecimento mais elevado e com a compreensão interior. O que até aqui foi considerado um amor cristão é cego e sem visão interior, por isso pode se explicar até mesmo a Inquisição. “Quanto mais cego é o amor,” disse Jung,[23] “mais instintivo ele é, e leva a conseqüências destrutivas, pois ele é uma Dynamis, que necessita de forma e direção.” Para seu uso correto necessita de uma consciência ampliada e de um ponto de vista mais elevado, pois o ser humano inconsciente é enganado pelas suas projeções e, por isso, não pode verdadeiramente ver o outro e nem amá-lo como ele é. Uma inconsciência grande em demasia do sentimento produz ainda, em primeiro lugar, uma aproximação grande e íntima demais sem um unir-se, que depois resulta em uma enantiodromia através de mútuas explosões de afeto. Porém, uma relação sentimental diferenciada inclui certa distância, que em cada caso é diferente. Jung escreve em uma carta:[24] “Diminuir as distâncias entre as pessoas é um dos capítulos mais importantes e mais difíceis do processo de individuação. O perigo está sempre que a distância seja construída de forma apenas unilateral, surgindo então infalivelmente uma forma de violência seguida de ressentimento consecutivo. Todo relacionamento tem seu ponto ótimo em distância, que deve ser descoberto empiricamente. (...) As resistências devem ser consideradas com o máximo de atenção...” Jung ressalta que isso é especialmente difícil entre homem e mulher, pois então se mistura ainda a sexualidade. Uma relação sentimental diferenciada seria, portanto, ao mesmo tempo uma profunda compreensão e uma cálida aproximação pessoal com o outro, como também certa distância, um entender-se e um não-entender-se, o qual significa o silencioso respeito ao segredo do outro ser humano. Para um amante cego e instintivo esse distanciamento ocasiona uma grande dor, mas garante a ele ou a ela também a sua própria liberdade, sem a qual a individuação não é possível. Isso me parece um ponto de grande importância e de significado para o futuro.

Em uma discussão sobre o perigo de uma Terceira Guerra, desta vez de uma guerra atômica, expôs Jung que a única força contrária poderia ser um movimento religioso universal,[25] que conduziria para uma virada total. Desde que Jung escreveu isso em 1945, podemos observar que aconteceram tentativas nessa direção em diversos lugares: uma revivificação do islamismo, seitas como as Bahai, os coreanos Moonies, missões budistas ou incontáveis gurus hindus. Todos eles tentaram ocasionar tal movimento mundial, também não fez menos a Igreja Católica, na qual uma e outra vez “o Espírito, no sentido religioso, move a massa animal,”[26] assim como também mostram os recentes acontecimentos na Polônia. Todavia todos esses sistemas religiosos não são somente um fator redentor, eles mesmos têm também uma sombra perigosa. Um arquétipo que move massas e, principalmente, conduz as pessoas a pensarem que somente elas detêm a Verdade, de forma que, por isso, perseguem aquelas que pensam de outro modo. Além disso, os líderes religiosos ambicionam, uma vez que outra, à semelhança dos líderes políticos, que o indivíduo se identifique totalmente com a sua Verdade, a qual permanece sendo sempre unilateral. “Mesmo que devesse se tratar de uma grande verdade, a identificação com ela seria algo assim como uma catástrofe, de modo a paralisar o contínuo desenvolvimento espiritual. Ao invés de conhecimento tem-se, então, somente a convicção, e isso é às vezes muito mais cômodo e, por isso mesmo, mais atraente.”[27] Em outras palavras, um movimento religioso mundial, a princípio, poderia nos salvar da destruição espiritual do materialismo e, talvez, de uma Terceira Guerra Mundial, mas teria sempre ainda a desvantagem de auxiliar uma certa mentalidade gregária. Somente uma compreensão consciente dirigida à própria sombra e à sombra dos arquétipos, isto é, dos poderes religiosos, poderia nos proteger da psique gregária e sua tendência de ser arrastada à autodestruição. Mas isso significa que temos de desenvolver uma relação sentimental diferenciada – inclusive a necessária distância para com nossos poderes interiores – devemos estabelecer uma relação eu-tu com o Si mesmo, com a Divindade ou o Numinoso, e não, em vez disso, desenvolver um fanatismo religioso não-crítico, o qual se baseia em uma possessão pelo Numinoso.

A relação sentimental com os semelhantes de fora e com as potências arquetípicas no interior andam de mãos dadas de forma estranha. Em suas Memórias Jung acentua que o critério de uma vida é a relação com o ilimitado, isto é, com o mundo numinoso do arquétipo.[28] “Somente quando eu sei que o ilimitado é o essencial, é que não desperdiço meu interesse em futilidades. (...) Em última instância só se tem algum valor por causa do essencial, e se não se tem isso, desperdiçou-se a vida. Também na relação com outros seres humanos o decisivo é se o ilimitado se expressa nela ou não.” Jung quer dizer com isso que uma relação profunda com o outro somente é possível através do Si mesmo. Geralmente, do ‘eu’ para o ‘eu’ existem somente associações e interesses superficiais. Como o Si mesmo se beneficia em uma relação eu não posso dizer aqui. Jung tentou mostrá-lo em seus livros sobre a transferência e em Mysterium Coniunctionis. Mas uma e outra vez segue sendo uma misteriosa aventura do amor.

Parece-me – para concluir –, que hoje em dia o pedido de Jung está sendo gradativamente melhor compreendido do que no período em que viveu, mas este ponto extremamente importante, a reabilitação do Eros intra-humano e de uma relação sentimental mais diferenciada com o Transcendente, ainda não é muito levada em conta. Muitas pessoas vêm as idéias de Jung como um sistema filosófico ou uma teoria, ou ainda pior, como uma nova ideologia coletiva ou como uma nova orientação na teoria psicológica, algo que nenhuma delas é. O processo analítico é um processo de pura experiência empírica, no qual a psicologia se transcende em si mesma como pura ciência.[29] No decorrer deste processo tudo se converte em um encontro vivo com entidades interiores e exteriores, com as quais devemos estabelecer uma relação sentimental. O foco de Jung sobre os elementos individuais é, por isso, consciente e a propósito unilateral, para compensar a unilateralidade coletiva predominante. “Há e sempre haverá,” escreve ele por volta de 1934,[30] “os dois aspectos, isto é, o ponto de vista do líder social, que, enquanto idealista, vê o bem-estar numa maior ou menor ocupação do indivíduo (a favor da comunidade), e o líder espiritual que objetiva apenas um aperfeiçoamento do indivíduo. Não vejo possibilidade de uma conciliação entre eles, uma vez que constituem um par necessário de opostos, que mantém o mundo em equilíbrio.” Jung viu sua própria tarefa na melhoria dos indivíduos, que simplesmente não dá resultado sem uma relação sentimental, pessoal e única. Talvez ele entre um dia para a História como aquele cavaleiro procurado, o qual trouxe de volta para a sociedade o desaparecido Santo Graal, o princípio feminino do Eros, isto é, como aquele ‘homo putissimus’ da Alquimia, que transpirava sangue rosado – uma nova forma de Amor curativo e totalizador, que embora não possa eliminar o recentemente chamado par de opostos coletivo-individual, possa construir uma ponte entre ambos.




[1] Carta para Sra.Olga Fröbe-Kapteyn, 16 de agosto de 1947, apenas na edição inglesa, vol. I, p.475.
[2] N.5, 1, jul.1981, p.13 em diante.
[3] O.c. p.17/18.
[4] Cartas, vol. III, p.88, carta de 11.06.1957.
[5] Cf. Ibid., vol. III, carta de 26.5.1956, p. 24-25; cf. carta 09.7.1957, p. 97.
[6] Im Umkreis des Todes. Daimon, Zurich, 1980, p.34.
[7] Cartas, vol. I, carta de 20.03.1937, p. 242.
[8] Cartas, vol. I, carta de 10.10.1933, p. 144.
[9] Cartas, vol. I, carta de 20.01.1934. p.154.
[10] Cartas, em 14 de setembro de 1960, vol. III, p.291-292.
[11] Cartas, carta de 19 de outubro de 1960, vol. III, p. 294-297.
[12] Cartas, vol. III, carta de 06.12.1960, p. 306-307.
[13] Cf. Obras Completas, tomo X.
[14] Cartas, 12.07.1947 para A. Heinz E. Westmann, vol. II, p.78.
[15] Acentuação feita por mim.
[16] Cartas, vol. III, carta de 17.08.1957, destinatária não identificada ma Suíça, p. 100-102 e também a carta de 23.09.1949 para Dotothy Thompson/E.U.A. p. 141-145.
[17] Cartas, vol. II, carta para Aloys von Orelli – Zurique – de 07.02.1950, p.151-152.
[18] C.G.Jung Letters, vol. I, carta para H. G. Baynes em 22.01.1942, p. 311-313. Apenas nas cartas em inglês.
[19] Cartas, vol. I, carta para Conde Hermann Keyserling em 10.05.1932, p. 108-109.
[20] Von den Wurzeln des Bewusstseins. Zürich 1954. Der Philosophische Baum, cap. 7, p. 411 em diante: Das rosenfarbene Blut und die Rose.
[21] C. G. Jung Letters, vol. I, carta para Erminie Huntress Lantero de 18.06.1947, p. 464-465 – (apenas no inglês).
[22] Obra citada (20) Wurzeln, p. 412.
[23] Idem, p. 414.
[24] Cartas, vol. I, carta para Oskar A. H. Schmitz em 20.09.1928, p. 70.
[25] Conforme carta para o Pastor Hans Wegmann de 12.12.1945, Cartas, vol. I, p. 405-406.
[26] Idem.
[27] Obra citada de von den Wurzeln, p. 585.
[28] Memórias, Sonhos, Reflexões. Editora Nova Fronteira, 1963. (O grifo é meu).
[29] Von den Wurzeln, cap. 1, p 590/91.
[30] Cartas, vol. I, para Samuel D. Schmalhausen, carta de 19.10.1934, p. 187-188.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

EM MEMÓRIA: Marie-Louise Von Franz, 1915-1998


EM MEMÓRIA: Marie-Louise Von Franz, 1915-1998
Considerações sobre o adeus por Daryl Sharp*

tradução Conceição Soares Beltrão e Flora Bojunga Mattos, revisão de Susan C. Brown



“Para as pessoas presentes, quando a urna será colocada na terra, 80 lugares estão reservados nos assentos da frente na igreja. Se você puder estar na rua Lindenberger nº15 às 13h do dia 26 de fevereiro, nós caminharemos juntos para o cemitério.”

Esta foi a última mensagem que recebi antes de partir de Toronto para estar presente à cerimônia fúnebre da Dra. von Franz, planejada para acontecer na Igreja Protestante de Küsnacht, um subúrbio de Zurique. Esta mensagem foi enviada pela Dra. Bárbara Davies, assistente de von Franz nos últimos 14 anos e sua escriturária nos últimos 8 anos.(Em conseqüência da doença de Parkinson, Dra. von Franz, gradualmente foi perdendo a habilidade de escrever e caminhar.)

À rua Linderberger 15 está a despretensiosa e pequena casa onde von Franz morou por mais de 40 anos, a maior parte desse tempo em companhia de sua grande amiga e colega Barbara Hannah, a qual morreu em 1986 aos 95 anos. A casa está numa colina com vista para Küsnacht e o lago de Zurique. Eu fui convidado para ver o quarto, no qual ela tinha morrido na manhã de 17 de fevereiro. Havia uma cama de solteiro, uma escrivaninha com uma cadeira simples, uma poltrona grande e confortável, uma poltrona de couro, uma pequena mesa de cabeceira, uma mesa de leitura e uma estante abarrotada de livros do chão até o teto. Flores por toda parte davam a aparência de um lugar sagrado. Foi dentro deste quarto, me lembro, ela tinha me recebido, diversas vezes, há mais de 20 anos atrás.

Enquanto caminhávamos para o cemitério sob um céu sem nuvens, Bárbara Davies contou-me sobre os últimos dias de von Franz. “Ela se preparou muito bem para deixar esta Terra e falou, alguns meses atrás, sobre estar há tempo demais na ‘sala de espera’. Ela insistiu que não fossem usados procedimentos medicamentosos para prolongar a sua vida. Ela se recusou a ir para o hospital. Ela queria viver as últimas horas em sua casa com os amigos. Ela estava sem medo da morte e estava completamente lúcida até o fim. Apesar de a sua doença progressivamente debilitar a sua saúde física, sua mente estava cristalina até o momento de sua morte.”

Uma multidão considerável tinha se juntado na sepultura. As cinzas de von Franz estavam em uma pequena urna de cobre ao lado da cova no chão, bem ao lado da pedra principal que marca o túmulo de Bárbara Hannah. Dr. Gotthilf Isler, um amigo de longo tempo e associado ao recentemente formado “Centro de Psicologia Profunda de acordo com C.G.Jung e M-L von Franz” leu um breve elogio. O pastor oficiante então baixou a urna para o chão e Dr. Isler lançou uma pá de terra.

Prof. Theo. Abt, um membro fundador do novo Centro, colocou um pote de flores em cima da urna, então lançou uma pá de terra. Ele passou a pá para outra pessoa, que repetiu o ritual. Outros, inclusive eu, aproximaram-se, casualmente, e com a pá ou com as próprias mãos (principalmente as mulheres) juntaram terra e jogaram sobre a urna. Isto durou em torno de 10 minutos, em silêncio exceto por um choro baixinho.

A Igreja Protestante em Küsnacht é imensa, mas o mais impressionante é a sua simplicidade. Existem poucos símbolos religiosos expostos. Chamando a atenção estão as três janelas altas com vitrais de cristal fino em cada lado do altar, o qual nesta ocasião estava coberto por coroas e buquês de flores, enviados do mundo inteiro por pessoas e grupos junguianos. Não houve cerimônia, simplesmente, uma breve recepção feita pelo pastor, em alemão e inglês, aos mais de 800 presentes que lotavam o espaço: analistas, ex-analisandos, amigos, parentes e pessoas da cidade.

Houve três discursos. O primeiro foi em alemão pelo Dr. Isler, que relatou um número de sonhos que von Franz tinha tido, os quais foram importantes em sua vida. (Alguns desses aparecem em seu livro Os Sonhos e a Morte, que eu estava lendo durante o vôo). Ele estava sendo acompanhado por cinco excelentes músicos jovens da Orquestra Tonhalle de Zurique, que tocava o Quinteto Forelle de Schubert. Nos foi dito que este concerto tinha sido escolhido, especificamente pela von Franz, e recebeu aplausos bem merecidos.

Anne Maguire, Doutora em Medicina, analista junguiana de Londres, uma íntima amiga de von Franz por volta de trinta anos, encarregou-se do passo seguinte do funeral em Inglês. Ela também falou de sonhos e eventos compartilhados, enfatizando a função sentimento de von Franz, bem como a sua alta capacidade de insight e a função pensamento como uma espada afiada (=discernimento), seu trabalho pioneiro sobre a interpretação dos contos de fada e seus extensos escritos sobre a alquimia como um paradigma do processo de individuação. Ela fez menção especial para a Dra. Davies e as várias enfermeiras que tinham carinhosamente cuidado de von Franz durante seus últimos anos.

Dr. Roy Freeman do ETH (Instituto Federal Politécnico) falou brevemente de seu projeto de pesquisa que já tinha dados coletados, relacionando os sonhos e sincronicidade, graças ao generoso legado de von Franz.

Era sabido que von Franz não queria que ficássemos tristes com sua morte e, por isso, ela tinha providenciado uma celebração maravilhosa. O pastor disse-nos “todos vocês estão convidados para ir à Casa Paroquial, no espaço comunitário no outro lado da rua, para comer e beber e ficar em ‘alto astral’ por sua memória”.

O serviço terminou com uns poucos momentos de oração silenciosa. Ao sair da igreja, na soleira da porta, curvei-me para pegar uma caneta esferográfica Pilot preta. Eu tomei este achado como um sinal que eu deveria escrever sobre minha experiência (e usei aquela mesma caneta para os primeiros rascunhos deste relato).

Do lado de fora, as pessoas se juntaram para consolar umas as outras, saudando velhos amigos e fazendo novos. Esta convivência conjunta continuou na sala comunitária, onde um suntuoso buffet e um aparente interminável suprimento de vinho suíço reviveu nosso espírito e selou a ocasião com alegria. “Marlus” – como von Franz era conhecida pelos seus amigos – certamente estava lá. E eu estava muito feliz também.

Eu saí dessa reunião em companhia de Bob Hinshaw, um velho amigo e editor da Daimon Books, que tinha me enviado pelo correio eletrônico notícias pela manhã da morte de von Franz. Nós passamos a noite em vários estabelecimentos ao longo de Niederdorf (um bairro de vida noturna em Zurique), debatendo sobre ela e seu trabalho assim como nossos próprios questionamentos. Foi um apropriado fim para um dia que tinha iniciado com o coração apertado – uma confirmação que a vida continua. Durante a semana seguida ao funeral, eu tinha relutado com a idéia de ir ou não. Bob tinha me encorajado para estar lá, profetizando que eu não me arrependeria de fazer uma longa viagem, e ele estava certo.

Pessoalmente, eu sentirei falta dela profundamente. Ela me acompanhou durante meus anos de treinamento no Instituto de Zurique nos anos 70, e mais tarde ela se tornou um membro honorário muito bem quisto do Inner City Books. Próxima a Jung, o espírito dela me guia em tudo o que eu faço. Nós nos sentimos privilegiados de ter publicado cinco de seus livros, incluindo sua biografia de Jung. Apenas meses atrás, ela ofereceu-nos um sexto (O Gato: um conto de redenção feminina), o qual Inner City publicará no próximo ano.

Além da perda para a comunidade junguiana, nós devemos ser gratos por ela ter deixado excelentes trabalhos. O seu legado, certamente, será que ela apreciou na mensagem de Jung e fez o máximo para passar adiante. Além disso, porque ela não era apenas uma seguidora ‘cega’ (sem um pensamento próprio) de Jung, ela fez sua própria marca, pôs seu inimitável carimbo sobre a psicologia junguiana e sobre o que ela ensinou.

J. Gary Sparkes, analista junguiano em Indianópolis, na página da internet dedicado à memória e valorização de von Franz, expressou influência dela sobre ele como:

“Seu brilhantismo desafiou meu limite na melhor forma de aprendizado da habilidade analítica. Seu intelecto era penetrantemente afiado, contudo esta força era baseada no amor e não no poder. Assim sua exigência por competência nunca era sentida como pressão, embora ela pudesse ter a força de um furacão. Ela costumava dizer: Olha esta civilização. A sua história deve ser compreendida em profundidade para fazer justiça ao sofrimento do espírito humano.”

“Eu sempre senti que eu tinha sido introduzido, através do rigor, a uma excelência pela qual há tempo eu estava ávido de fome. Quem não ia querer realizar isto, e quem não ia querer cooperar? Foi a primeira vez que eu senti que a autoridade está a serviço da essência da vida. Antes de tudo eu recordo a intensidade e humanidade de seu espírito criativo, o qual queimou direto ao centro, inspirando-me uma reavaliação de tudo. Ela era exigente em função de uma resposta bastante analítica para as condições atuais. Este desafio é algo do qual eu queria fazer parte.”

Sim, e eu também.

* Estudos em Psicologia Analítica por Analistas Junguianos, Daryl Sharp, editor e redator geral

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

PSICANALISTA REÚNE KANT E I-CHING - Por Gilson Schwartz - Especial para Folha de São Paulo



Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, de 02 de novembro de 1987.

PSICANALISTA REÚNE KANT E I-CHING
Por Gilson Schwartz
Especial para Folha de São Paulo

Marie-Louise von Franz fala sobre a possibilidade de se abrir espaço para a irracionalidade da ciência e sobre o poder do acaso.


Nada mais comum, depois das derrapadas de um ato falho ou mesmo diante de uma descompostura alucinada, que ouvir alguém abrir parênteses para dizer: “Freud explica”. Mas como qualquer outra marca registrada de nossa época, esse anúncio luminoso pode tanto ofuscar quanto esclarecer. Há muito mais entre o falo e o vaso do que imagina nossa vã psicologia.

Em 1906, com 31 anos, Carl Gustav Jung experimentava a vertigem da ciência. Advertido por dois professores alemães contra sua persistência em ficar ao lado de Freud, defendendo-o, atitude que colocaria seu “futuro universitário” em perigo, Jung respondeu: “Se o que Freud diz é verdadeiro, ficarei com ele. Pouco me importa uma carreira que silenciasse a verdade e mutilasse a pesquisa”. Apoio incondicional à ciência e à pesquisa, mas defesa de Freud apenas no caso de sua teoria ser verdadeira. Jung não chegou, afinal, a negar a verdade da teoria freudiana das “neuroses causadas por recalques ou traumas sexuais”. Entretanto, movido por outro ânimo, Jung lutou contra a conversão daquela verdade num dogma. Que as teorias psicológicas virem dogmas não é novidade. Basta contar o número de “igrejinhas”, cada uma cultivando a sua “verdade” (freudianos, kleiniano9s, lacanianos, junguianos etc.).

Marie-Louise von Franz é discípula de Jung, mas abomina a “escola junguiana”, o Instituto, o carreirismo. Prefere reunir-se, sem verbas sem cargos com um grupo de estudiosos dispostos a verdade. Aos 72 anos, é a única sobrevivente do círculo íntimo de trabalho que existiu em torno de Jung. Vive numa pequena casa em Kusnacht, cidade próxima a Zurique, na Suíça – onde, aliás, está instalado o Instituto Jung, à beira do lago. A casa de von Franz fica afastada desse instituto que ela já não freqüenta. É uma casa simples de jardim abandonado. Na biblioteca, entre livros de psicologia, história, antropologia, destaca-se uma enorme estátua esverdeada do Buda indiano.

Marie-Louise von Franz conhecer Jung em 1934. Ela, aos 19 anos (ele com 59), já tinha uma cultura filológica e filosófica suficiente para colaborar com o mestre na tradução de textos do grego, latim e sânscrito, necessários para a pesquisa sobre a alquimia que Jung então desenvolvia. Mas apenas em 1951, quando se publica “Aion”, o nome de Von Franz aparece como autora de uma interpretação das visões da mártir Santa Perpétua. Entre 1955 e 1957 a colaboração chega ao cimo, com a publicação de “Mysterium Coniunctionis”, estudo sobre “a separação e a reunião dos opostos na alquimia”. O terceiro e último volume, de autoria de Von Franz, contém o texto, a tradução e o comentário psicológico de um tratado de alquimia atribuído a São Tomás de Aquino (Aurora Consurgens). Eis a cifra renovada da vertigem: buscar mundos fundadores do racionalismo moderno as pistas do inconsciente. Um dos aspectos do pensamento de Jung especialmente prolongados pela obra de Von Franz é o estudo do simbolismo dos números. Em (Número e Tempo) (1970) esse simbolismo traduz um elo entre a psicologia do inconsciente e a física moderna. Esse elo envolve o conceito de “sincronicidade”. É como se todos os acontecimentos do tempo histórico fôsse reunidos numa identidade objetiva e transcendental que, entretanto, se revelaria em alguns momentos casualmente significativos. É o acaso significativo, aquelas coincidências, sonhos, premunições que nos colocam em contato com uma realidade dita “oculta”. Esse acaso que explica e orienta como no jogo do “I-Ching”, só pode ser apreendido quando ultrapassamos a fronteira segura da explicação causal. Von Franz tem desbravado esse território multidimensional, com a colaboração de físicos, biólogos e historiadores. O conceito de “sincronicidade” como outros ligados a obra de Jung, parece impregnado de irracionalidade. Certamente não se reduz aos modelos explicativos tradicionalmente usados na ciência moderna, porque exige ao mesmo tempo vontade de conhecimento e consciência dos limites da racionalidade. Essa trilha ambivalente, que procura combinar opostos irredutíveis, (racional-irracional, macho-fêmea, quantidade-qualidade, matéria-espírito) define um tema atualíssimo. Vide (as controvérsias vazias que, inclusive no Brasil, dominam a cena cultural. Merquior acusa o machismo de irracionalismo, Rouanet perde a paciência com os pós-modernos, Chauí exorcisa as competências. Ao vencedor as batatas. Mas essa luta não tem vencedores ou vencidos, ela é o espelho, a projeção da participação e do controle limitados de cada um dos interlocutores no processo de democratização brasileira. O debate sobre racionalidade x irracionalidade, não surge por acaso agora. Ou talvez, seja um desses acasos significativos. Intelectuais de diferentes inspirações ideológicas disputam a definição da linguagem da transição, dos termos da construção do futuro desta sociedade. E nada mais antigo, nas sociedades humanas, que é essa procura de elo racional entre o presente e o futuro. A obra de Jung e a reflexão de Von Franz sobre o nosso (tempo) podem ajudar novos caminhos ou, no mínimo, a entender porque as encruzilhadas do labirinto ficam repentinamente bloqueadas.
Folha Quais as transformações contemporâneas do conceito de tempo e como ela se relaciona com o conceito da causalidade?
Marie-Louise Uma reflexão a partir da filosofia de Kant esclarece que a causalidade não é um fenômeno objetivo, mas uma das formas com que enxergamos as coisas: “por causa disso, ocorre aquilo” na verdade, as duas coisas acontecem e nós fazemos a conexão. A causalidade é uma categoria de nossa mente ou da nossa forma de pensar. Mesmo padrão comportamental dos animais está sintonizado “se tal coisa acontece, comporto-me desse modo”. É um conceito com raízes portanto, bastante profundas, mas não é tudo. Sabe-se na mecânica quântica que nem tudo é explicado de modo causal. Há fenômenos comprovados apenas estatisticamente, e há por assim dizer lacunas onde a causalidade não funciona. O novo conceito de “sincronicidade” criado por Jung, não joga fora a causalidade, mas preenche aquele vazio ou lacuna. Ao invés de usar a expressão “não causal”, Jung optou por uma expressão positiva, “sincronicidade”. Há algo mais se manifestando.
Folha A idéia de “sincronicidade”, entretanto, associa-se a processos de ação como no “I-Ching”.
Marie-Louise Todo conceito novo tem, na realidade, raízes históricas. As raízes históricas da “sincronicidade” são mágicas. Além da causalidade, a humanidade sempre lidou com mágica, povos primitivos têm fazedores de chuva e Xamãs. Mas essa é a mentalidade primitiva. A noção de “sincronicidade” dispensa essa referência à mágica, substituindo-a por um conceito muito mais disciplinado. É um conceito que dá conta de uma manifestação temporária e pontual da totalidade significativa.
Folha Qual seria um bom exemplo real e atual de “sincronicidade”?
Marie-Louise Usando a sua linguagem de economista, pense nas pessoas que especulam nos mercados financeiros. Ela tem um comportamento mágico, usam amuletos, acreditam em dias bons em oposição a dias negros. A especulação está permeada de pensamento mágico. Em outras palavras, a realidade empírica da economia mostra que na especulação está em jogo um fator irracional que tem um aspecto psicológico.
Folha O conceito de “sincronicidade” poderia ser aplicado a outras disciplinas das ditas ciências humanas?
Marie-Louise Trata-se de um conceito realmente básico. Poderia ser usado, por exemplo, numa revisão da história. Escrevi um artigo sobre a deusa Nikér, da vitória. A vitória militar não é apenas uma questão racional (mais soldados, mais armas). Os alemães perderam a batalha do Marne, na primeira guerra mundial por acaso: uma determinada ordem não foi seguida.
Folha A outras correntes filosóficas contemporâneas que procuram reconstruir a noção de racionalidade sem cair no determinismo. Habermas, por exemplo, insiste no diálogo e no consenso como formas de superação da racionalidade estritamente técnica. Como relacionar esse tipo de tentativa à visão de Jung?
Marie-Louise A diferença de Jung é que ele entra com o conceito de inconsciente. Outros chamam-no “irracional” e então o racionalismo com referencia ao dialogo, ao sentimento e etc. Jung dizia que há fatores muito mais profundos, ligados a força criativa do inconsciente. Isso é novo e provoca muitas reações, pois as pessoas têm medo. Quando você fala em diálogo, a manipulação ainda é possível. Mais ainda surge a esperança de aperfeiçoar essa manipulação: “e se sentarmos juntos para fazer psicodrama poderemos superar as dificuldades”. Mas para Jung é preciso render-se, a “dificuldade” nunca será superada. A “sincronicidade” não pode ser manipulada. Assim, Jung promove uma derrota completa da racionalidade. Mesmo assim há uma possibilidade de manipulação no conceito junguiano. Se você tem uma atitude positiva frente ao inconsciente, ele se torna muito mais benevolente. Senão pudéssemos manipulá-lo em absoluto não haveria psicoterapia. A partir de uma atitude consciente, frente ao inconsciente, a “sincronicidade” pode trabalhar positivamente para o paciente, ele é curado. Eu diria que não se pode manipular, mas, tornar o contato com o inconsciente mais amigável.
Folha Uma sociedade informatizada tornaria essa consciência do inconsciente mais difícil?
Marie-Louise Há um exagero de racionalidade que pode produzir exatamente o seu oposto. Ir muito longe em direção a um extremo gera o extremo oposto, é o conceito de enantriodromia (inversão de uma situação psíquica, G.S.). Por isso vemos a irracionalidade tornar-se cada vez mais presente. Pessoas como Comeine, Kadaf são completamente irracionais. Entre os jovens a música Pop, por exemplo, coloca uma ênfase completa na irracionalidade. Corremos, portanto o risco de cair repentinamente na irracionalidade, num pensamento primitivo e mágico, caótico, ao invés de optarmos pelo meio termo e usar os sistemas de computadores onde é apropriado, evitando seu uso onde não são necessários.
Folha Quais as chances reais da humanidade atingir esse meio termo?
Marie-Louise Para Jung, alcançar esse meio termo da reflexão razoável é sinal de cultura, mover-se na direção oposta é primitivismo e barbárie. Ainda não sabemos se a superação da barbárie será possível.
Folha Haveria na história humana um padrão cíclico de oscilações entre o racional e o irracional, ou se pode acreditar num processo evolutivo?
Marie-Louise Eu não sei, minha mente está aberta para essas duas possibilidades. Por temperamento, estou inclinada a acreditar numa evolução cultural muito lenta que transcorre ao longo de milhares de anos, com ciclos de criação e destruição num meio tempo. Mas se considerarmos 10 ou 20 mil anos felizmente tornou-se um pouco mais cultivada.
Folha Há no feminismo um sinal de que a cultura de transforma?
Marie-Louise Essa é uma parte daquela conversão ao irracional. As mulheres têm uma relação com o irracional melhor que os homens, ao não ser que se masculinizem. Uma mulher feminina tem uma inclinação natural ao irracional, a seguir, seus sentimentos ou intuições. Para uma mulher, dizer “não pode te explicar, mas sinto que desejo fazer isso” não é loucura. Para um homem isso é meio louco, ele diz: “querida procure refletir”.
Folha Como o feminismo se enquadra nessa visão, agora que as mulheres ocupam postos de poder?
Marie-Louise Assumir papéis masculinos não é necessariamente uma coisa boa. Sou contra o feminismo porque sou contra a masculinização das mulheres. Sou um outro tipo de feminista, que procura dar mais valor ao “feminismo”. As mulheres precisam resistir ao complexo de inferioridade que levam muitas a imitar os homens. Ao contrário, temo pelos homens do futuro. Pobre homens...
Folha Como afirmar a liberdade diante da irracionalidade e da violência?
Marie-Louise A violência é novamente, parte daquela enantiodromia. Somos muito limitados pela racionalidade e os indivíduos não têm liberdade. Eu passo os verões no parque onde não vejo um policial. Ai surge um equilíbrio entre violência e decência, mas nas cidades você não pode correr pela rua quando quer, toda espontaneidade é cortada, você tem que olhar a luz vermelha, estacionar onde é permitido, e não andar sobre esse ou aquele lugar. Até os táxis estão computadorizados não se pode enganar mais ninguém. Você vive organizadamente da amanhã até a noite. A reação é pegar uma faca e fazer uma loucura.
Folha Isto estaria aparecendo entre crianças e jovens?
Marie-Louise As crianças apenas fazem aquilo que os adultos querem inconscientemente fazer. Se as crianças se brutalizam, isso significa que seus pais não estão conseguindo lidar com sua própria sombra de brutalidade. Os adultos acumulam uma sombra de brutalidade e não querem vê-la. A manipulação das crianças apenas criara uma geração neurótica e criminosa.
Folha A religião seria uma forma válida de conviver com o irracional?
Marie-Louise Religião pode significar duas coisas opostas. Poder ser o ato de ir a igreja, pertencer a uma seita e acreditar em certas coisas e comportamentos. Isso nós não precisamos necessariamente. Pelo menos as religiões existentes são muito deficientes. Mas pode-se entender religião de outra forma, como uma experiência luminosa de um aspecto do inconsciente. Disso nós precisamos muito, prestar atenção as forças irracionais da natureza dentro de nós e no mundo exterior. Dessa religião nós realmente precisamos, na verdade é tudo o que precisamos. Tomar consciência do que se passa nos bastidores. É o que fazemos na psicoterapia junguiana: observar os sonhos e ensinar o paciente a observar seus sonhos e adaptar-se aquilo que seus bastidores irracionais desejam dele.
Folha Como funciona o Instituto Carl Gustav Jung aqui em Kusnach?
Marie-Louise O Instituto local é praticamente anti-junguiano, completamente estéril. Os melhores já se aposentaram. As pessoas erradas assumem as posições de liderança, apenas em busca de dinheiro e poder. Sempre que o poder domina, há esterilidade e degeneração. Mas isso não importa: organizamos um pequeno grupo, desorganizado e sem dinheiro, que funciona muito bem.
Folha Qual a polêmica central entre Freud e Jung?
Marie-Louise Freud via o inconsciente como algo a ser removido e manipulado. Jung via o inconsciente como algo poderoso e criativo que não pode ser manipulado. Jung considera o irracional enquanto irracional, ao invés de racionalizá-lo rapidamente, chamando-o de “sexualidade”.

Obs.: O encontro com Marie-Louise von Franz foi facilitado pelo intermédio de Matheus Ajzeuberg, Mosoko Oki e Leniza Castelo Branco. A viagem à Suíça foi cortesia da Swissair.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Apresentação




O Movimento Junguiano nasceu durante o Ciclo de Filmes com Jung promovido pelo Espaço Arte-Ciência e coordenado pelas psicoterapeutas de orientação Junguiana Conceição Soares Beltrão e Flora Bojunga Mattos, em 2008, objetivando divulgar a visão de mundo de C. G. Jung e M-L von Franz. Acreditamos que esses pensamentos podem ser utilizados como ferramenta para a restauração do afastamento humano de sua própria natureza. Os danos que infligimos ao Meio Ambiente são semelhantes aos causados em nossa vida psíquica, pois para Jung e von Franz nas camadas mais profundas entramos em contato com o que somos, pura natureza. É nessa instância que se conectam o Inconsciente Coletivo e a Micro Física. A conseqüência dessa desconexão interior fica evidenciada na proliferação do sofrimento psíquico, que ocasiona superlotação em hospitais, consultórios psicológicos e médicos, balcões de farmácia, enfim, na busca de algum alívio imediato.