domingo, 31 de maio de 2015

Sincronicidade discutida através do filme UM CONTO CHINÊS

Flora Bojunga Mattos[1]

O filme argentino de 2011, ‘Un cuento chino’ com roteiro e direção de Sebastián Borensztein – inspirado em um relato esdrúxulo, no entanto verídico e acontecido na Rússia em 2008[2] - narra a história, também insólita, sobre a relação de um comerciante portenho de vida monótona, fechado em si, mesquinho, amargurado e a intensa convivência com um jovem chinês imigrante que leva para a sua casa e o ajuda na busca do tio que mora na Argentina.
O personagem principal Roberto, dono de uma pequena ferragem, é quem nos conduz na experiência de descongelamento do modelo de pensar linear – predominante em nossa sociedade contemporânea ocidental – ao acompanharmos o seu enfrentamento cotidiano com o inesperado encontro e a coexistência com o chinês. O personagem coadjuvante Jun, no papel do imigrante asiático, nos envolve no modelo oriental de se comportar e nos apresenta sem impor, com a aparência de certa passividade, a possibilidade de ampliarmos a visão habitual, a ponto de permitir a virada para uma atitude diferente de lidar com a vida, principalmente no que diz respeito a dar mais espaço para o afeto.
No hábito de colecionar histórias inusitadas e de se idealizar como protagonista nelas, Roberto não poderia imaginar que através desse hobby construía, por uma vertente latente e silenciosa – de qualidade arquetípica –, um modo de agir que o tiraria da rotina rígida e solitária que o prendia ao passado. Tal qual o modelo geral da ciência, Roberto mantinha como única realidade a consciência de uma tradição racional, embasando-se em acontecimentos de sua história pessoal, sem o saber, referenciava a causa e o efeito, sendo justamente esse o questionamento com que vem se deparando o novo paradigma científico difundido popularmente desde a segunda década do século XX pela Física Quântica. No entanto, anterior a isso, temos de considerar a experiência de C. G. Jung nos primeiros anos de 1900, testando e comprovando a abrangência e a materialidade de nosso psiquismo. Ele nos provou e o mundo ocidental absorveu a existência do inconsciente coletivo como base da psique na formação da consciência de todo o ser humano, conceito esse profundo (arquetípico) e fundamental na Psicologia Analítica que enfatiza a nossa relação e interconexão com a criação como um todo. Através dessas perspectivas, da Psicologia Analítica e da Física Quântica, podemos ampliar o conhecimento da realidade considerando os eventos sincronísticos[3]. O modo de perceber a realidade se alarga da simplicidade do tratamento adotado pela causalidade, de um evento ser a causa de outro, para a complexidade paradoxal e complementar, que se entenda como um conjunto significativo e conectado de fatos, que nos conduz a seu sentido. Jung denominou de sincronicidade a esse modo de perceber acontecimentos acausais interligados entre si. A essa mesma realidade o físico Capra nomeou de orgânica. Os chineses há milênios olham os acontecimentos em conjunto, como um campo de sinais que nos falam de um significado a ser evidenciado.
O personagem desenvolvido através do asiático Jun, subvertendo a ideia pré-estabelecida em nosso contexto, nos possibilita descobrir o modo de pensar sincronístico, que é a maneira na qual podemos apreender da filosofia chinesa. Culturalmente a China nos ensina a perceber a configuração do momento, o que possibilitaria o alargamento de nossa consciência, mas ainda tendemos a nos prender aos acontecimentos isoladamente sem alcançar o estabelecimento de uma conexão do que ocorre ao redor do eu pessoal.
A partir do momento em que Roberto sabe que Jun é o protagonista de uma daquelas histórias que colecionava e arquivava há anos, amplia o seu conhecimento e a tensão é relaxada, constelando a possibilidade de ocorrer mudanças na vida de ambos. Então a narrativa se encaminha para a complexidade e deixa de lado a racionalidade plana dos acontecimentos bidimensionais, chapada no cotidiano, um modelo rígido de pensar guiado por um antes e um depois. É nesse instante que se abre a probabilidade do raciocínio envolver a emoção.
No modo causal de pensar, além do movimento mental ser linear: A causa B; B causa C; C causa D; e assim por diante; no geral tende a separar os eventos físicos dos eventos psicológicos. A ideia prevalente até o século XIX, por exemplo, era de que as causas físicas terem efeitos apenas físicos, portanto as causas psíquicas, ou não visíveis, somente poderiam apresentar efeitos psicológicos.
Atualmente nos permitimos fazer interações entre o psíquico ocasionar um evento físico e vice-versa. Pelo menos essa tem sido a discussão a que se propõe a medicina psicossomática, comprovando o fato de as pessoas apresentarem sintomas e até doenças, sendo a manifestação orgânica uma reação a emoções fortes vivenciadas, por exemplo, os desmaios, pressão alta, asma, diabetes e até infartos, entre outros tantos acontecimentos que vão mesclando o fisiológico e o psicológico. Ainda assim, a causa é vista antes do seu efeito, prevalecendo uma ideia da linearidade do tempo, embasada no antes e no depois, com o efeito vir sempre depois de algo ocorrido. Nesse caso, ou nesse tipo de medicina, ainda falta a visão da simultaneidade dos fatos no tempo.
O importante a ressaltar é do filme UM CONTO CHINÊS[4] se prestar à discussão desses dois tipos de pensar e privilegiar o fato de, mais do que uma coisa ser o fator causador de outra, ser a abertura para ir além da forma tradicional explicativa. A narrativa nos permite a possibilidade de enxergar os fatos conjuntamente, dando-lhes um significado que interfere em um dado momento na vida dos personagens. Exageraria até afirmar que o filme adota o modo de pensar sincronístico, como foi sempre desenvolvido pela filosofia chinesa – de juntar fatos e não separá-los –, provocando se buscar o sentido de um acontecimento. Não se importa com a distinção entre os eventos psíquicos e físicos (até porque nem sabemos onde um começa e o outro termina em verdade), mas reúne sem distinção acontecimentos internos e externos, apresentados pela narrativa do conto, pois de fato é desse modo que acontece na vida de todas as pessoas, embora não tenhamos o hábito de percebê-las assim, no entanto, só assim conseguiremos deixar emergir o sentido.
O ponto a salientar é de a vida estar repleta de acontecimentos espontâneos e suas simultaneidades no tempo e ainda nos prendermos estritamente a fatos explicativos, compartimentados em excesso, que levam ao desconhecimento e empobrecimento do sentido. Num tipo de atitude assim, abandonando inclusive a percepção de como nos sentimos em um dado momento – pelo fato de não computarmos a emoção – deixamo-nos ofuscar pela objetividade da razão, como se ela pudesse ser o centro norteador da compreensão, então perdemos de captar o entorno e de fazer relações que nos levariam a trazer um conhecimento mais amplo. A atenção e a concentração ao redor, incluindo os detalhes, pelo fato de olharmos para os acontecimentos de nossa vida interior em conjunto com os fatos externos que nos cerca em um dado momento e tudo o que nos for possível abarcar de algo que possa estar relacionado, nos remeteria a seguir o caminho de um sentido que se evidencia, mas que precisa ser reconhecido.
Para aprofundar o desenvolvimento da ideia sobre sincronicidade, a dica é ler as obras de C. G. Jung, principalmente o volume VIII sobre SINCRONICIDADE: UM PRINCÍPIO DE CONEXÕES ACAUSAIS, além do livro de M-L von Franz, ADVINHAÇÃO E SINCRONIDADE: a Psicologia da probabilidade significativa.

[1] Psicoterapeuta de abordagem analítica junguiana no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br, desde 2005 no projeto de CINETERAPIA, florabm@gmail.com .
[2] Ver relato no periódico Komsomolskaja Prawda que traz a notícia da polícia Russa detectar um grupo de delinquentes que roubava gado e o transportava via aérea. Num desses eventos as vacas foram jogadas do alto ao vazio, afundando uma embarcação pesqueira japonesa, numa verdadeira chuva de vacas, na costa russa.
[3] Fatos espontâneos acausais que acontecem de modo simultâneo em um dado momento, de qualidade arquetípica, e que possuem entre si uma relação significativa e nos conduzem a um sentido.
[4] Filme apresentado na sessão de CINETERAPIA do dia 19 de maio de 2015 no Espaço Arte-Ciência, Porto Alegre/RS - Brasil.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Exposição Hospital Matarazzo



Conceição Soares Beltrão


Sábado, enquanto preparava um lanche, liguei a TV em um canal voltado para ‘as artes’, e simultaneamente, fiquei olhando o que estava sendo mostrado. Então, vi essas imagens e não conseguia, de imediato, decodificar o que eu estava vendo. Depois o artista começou a explicar essa sua obra de arte, e a cada explicação as imagens iam surgindo.

Minha primeira reação foi: o que é isso?

Como podem fazer isso?

O que sentem essas pessoas quando lançam os vasos com as plantas e as ver esmagadas no chão?

 E o que sente o próprio artista mexicano ao conferir como ficaram esses seres jogados pelas janelas desse antigo hospital e hoje transformado em espaço de arte e cultura?

E se essas plantas pudessem falar ou emitir algum som audível aos nossos ouvidos, que diriam ou que sons produziriam? O que vociferariam?

O fato é que me chocou aquelas plantas serem lançadas do alto das janelas para ficarem ali com as raízes, que deveriam estar abaixo do solo, não acima expostas, como que ‘feridas abertas’, machucadas por esse lançamento do alto. Mesmo que estejam sendo regadas estão expostas, fora do espaço vital, o solo. Foram lançadas e possivelmente quebraram-se algumas folhinhas, um pedaço da raiz, ou na superfície do caule.

E o pior nessa reportagem, foi que toda essa ‘barbárie’ estava sendo mostrada e considerada como ‘expressão de arte’!

Essa não entendi!!! Ou melhor, é difícil aceitar!

Quando vejo na rua ou nas calçadas plantas que foram arrancadas de jardins e jogadas fora, isso sempre me inquieta, eu as recolho e planto em um vaso ou direto na terra.

Mas se eu fosse a este local, não poderia fazer isso, pois é uma instalação de arte, estabelecida em uma instituição voltada para o mundo das artes. É um projeto financiando por Instituições. Possivelmente, se eu fosse pegar essas plantas para socorrê-las seria impedida pela segurança do local.

Sabemos também que a criação envolve construção e destruição. Começo a desconfiar que essa arte, para mim, fala mais de destruição do que construção.

Por favor, façam arte, mas deixem nossas plantas indefesas fora dessas!



Vejam no site









domingo, 17 de março de 2013

                               A Totalidade do Ser[1]

Conceição Soares Beltrão [2]

Atualmente está em foco uma grande preocupação dos profissionais da área da saúde: o ‘estilo de vida’. Ele é considerado fator fundamental para se conseguir saúde e mantê-la em boas condições. Em razão disso, crescem os estímulos às atividades físicas, enfatiza-se uma alimentação boa e natural, ressalta-se a necessidade do lazer e do repouso. Constata-se, enfim, uma preocupação com o bom funcionamento do corpo para quem deseja ‘qualidade de vida’.

‘Ênfase no corpo’, contudo, insere-se num contexto mais amplo, pois vivemos num momento histórico no qual a valorização do mundo concreto, o mundo dos sentidos, encontra-se exacerbada. Paradoxalmente, tudo isso visa a longevidade, como se, desta forma, a ‘eternidade’ estivesse a nosso alcance. Pertence a essa realidade, a modulação do corpo através de métodos invasivos da medicina estética. Decorrente disso, surgem a cada dia novas técnicas para aperfeiçoar essa ‘estética do corpo’, tanto do corpo feminino quanto do corpo masculino.  A busca por se manter eternamente jovem lota as crescentes e numerosas clínicas de cirurgia plástica. Há um clima de mudar, de transformar o feio no belo! Mas será que o feio é o que vejo, ou o feio que vejo, em verdade, é o feio que sinto? A falta de sentido na vida, o vazio existencial, pode ser a feiúra projetada nas rugas que começam a surgir, nas ‘gordurinhas’ nas diversas partes do corpo, na indesejável curvatura do nariz, entre outras particularidades. Mais fácil é então se lançar na ilusão das intervenções da medicina estética do que se colocar frente a frente com o verdadeiro conflito e debater até entendê-lo, transformá-lo e integrá-lo à consciência, modificando desta forma a atitude frente à vida. Parece, pois, que nesse turbilhão de ‘alternativas externas’ fica mais fácil navegar no mar das ilusões estéticas do que enfrentar o que se teme enfrentar em si mesmo. Mas, sem o mergulho no mundo psíquico inconsciente, a insatisfação não cessa.

Apesar das fortes tendências contrárias, nosso modelo de ciência permanece preso a uma visão fisiológica do humano. Os profissionais da saúde cada vez mais se especializam e, nessas especializações, fragmentam a totalidade humana. O mote surgido na Antiguidade: mens sana in corpore sano, chama atenção para a unidade mente-corpo. Todavia, o atual enfoque restringe-se aos cuidados com o corpo, concluindo-se que se o corpo está saudável, a mente também assim estará! Essa é uma visão que ignora a existência da vida psíquica inconsciente. Como em nosso momento é a forma, o visual que importa, e como não vemos o inconsciente, ele acaba sendo ignorado, pensamos que ele não nos influencia, portanto, não existe! 

Não obstante, não podemos esquecer que somos uma totalidade. Somos uma unidade, o nosso corpo é parte do ser total que somos. Nosso ser envolve tanto a dimensão física quanto a dimensão psíquica, uma está conectada a outra. Se esquecermos uma dessas duas dimensões, nos tornamos vulneráveis. A obtenção da ‘qualidade de vida’ envolve tanto o cuidado com o corpo quanto o cuidado com nossa vida psíquica.

 Como Jung mostrou, nossa psique está longe de ser um bloco unitário. Nossa vida psíquica é uma pluralidade de vozes! Todas expressam, influenciam e impõem seus valores, fazendo-nos agir sem considerar a nossa própria vontade. A essas ‘vozes’ ou personagens internos, Jung denominou de Complexos de Tonalidade Afetiva. A partir da ‘Teoria dos Complexos’ de Jung, temos a possibilidade de conhecer a dinâmica psíquica e seu domínio sobre nós. Se intencionarmos uma vida saudável, precisaremos também considerar a nossa realidade psíquica inconsciente, como parte integrante de nós mesmos.

 Através do meu trabalho, como psicoterapeuta junguiana, diariamente constato a realidade psíquica inconsciente das pessoas que acompanho; manifesta-se no corpo no exato momento em que trabalhamos determinados conteúdos psíquicos trazidos à consciência através dos sonhos. Segundo Jung, deveríamos ser capazes de conectar o sintoma físico ao conteúdo simbólico inconsciente correspondente. Esse é o grande desafio, pois se o conteúdo é inconsciente implica dizer que não temos conhecimento de sua existência, dessa forma, como poder perceber sua influência e sua materialização em mim mesmo? Como conectar essas duas dimensões? Esta é uma das grandes contribuições que Jung nos deixou: a diferenciação, entre o eu e os conteúdos do inconsciente. Através da ação reflexiva podemos perceber a existência e a influência do inconsciente. No segundo momento devemos nos esforçar para identificar e sentir o inconsciente no exato momento de seu surgimento em minha consciência, isto é, quando tenta se materializar no próprio indivíduo. Precisamos saber, ainda, que nossa consciência é frágil e tênue, à semelhança de uma suave chama numa pequena lamparina, exposta aos eventos externos que a ameaçam. Por isso, este trabalho de conscientizar-se pressupõe estar sujeito ao esforço e à constância da vontade do eu para empreendê-lo. Nesta trajetória contamos com a ajuda do próprio inconsciente que constantemente nos envia cartas[3],  informando o que verdadeiramente está acontecendo em nós. Refletindo sobre os nossos sonhos, temos a chance de conhecer as características daqueles que ‘nos habitam’, reconhecer nas próprias ações determinado personagem. Para Jung os sonhos são relatos diários das condições psíquicas inconscientes do sonhador.

 Além dos sonhos, podemos conhecer os conteúdos do inconsciente através das visões, das projeções, além do trabalho com a imaginação ativa, técnica que Jung nos ensinou. Logo, precisamos considerar o inconsciente, como a verdadeira realidade a fim de, paradoxalmente, poderemos nos livrar de ações inconscientes e perigosas, originadas na negligência da existência do inconsciente em nós mesmos. Agindo dessa forma, considerando a inteireza do ser, o indivíduo tem a chance de estar favorecendo a qualidade em sua vida e interage, construtivamente, com as pessoas e seres que o circundam, visto que uns influenciam constantemente os outros.
 
[1] Texto realizado em 10/02/2013 e publicado no Blog  http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/
[2]  Psicoterapeuta de orientação Junguiana no Espaço Arte-Ciência www.espacoarteciencia.com.br
[3] Von Franz quando se refere o significado dos sonhos diz que eles são cartas diárias do Self para a consciência.

Bibliografia

Jung, C.G.: A Vida Simbólica; vol.XVIII/I; Editora Vozes; São Paulo, 1998.
________: A Prática da Psicoterapia; vol.XVI/I; Editora Vozes; São Paulo, 1981.
________: Presente e Futuro; vol.X/I; Editora Vozes; São Paulo, 1988.
Von Franz, M.L.: Psyche and Matter; Shambhala; Boston & London; 1992.
_____________: Reflexos da Alma; Editora Cultrix/Pensamento; São Paulo, 1997.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Refletindo Sobre os Cem Anos[1]


Flora Bojunga Mattos[2]

    Há um século, completado em janeiro deste ano, que a Psicologia marca sua posição definitiva na Ciência. Tenho como marco simbólico desse momento a atitude de Carl Gustav Jung frente ao grupo psicanalítico. Historicamente sabemos que um tanto de inquietação caracterizou sempre a amizade de Jung com Freud. Com o tempo não restou mais dúvidas das divergências serem maiores entre eles. Jung devia de enfrentar só as dificuldades na pesquisa psicológica em relação ao seu objeto de estudo – a psique –, já que verdades se impuseram a ele e desvelaram uma parte inconsciente coletiva que apresenta obscuridades bem maiores do que as que vinham lidando até então na Psicanálise, cismada da libido ser exclusivamente sexual, insistia do psíquico inconsciente ser apenas ligado à história pessoal. O grupo de Freud negava-se, terminantemente, a reconhecer a parte inconsciente coletiva, classificando-a de somente ‘resíduos arcaicos’ e não simbólicos. Atualmente sabemos da importância do campo coletivo inconsciente para a ciência como um todo, em seus vários aspectos.

    Devemos a Jung que, sem intenção de ser o pioneiro, seguiu o caminho do pesquisador em busca de desvendar o desconhecido, sacrificando a posição conquistada, abandonou o prestígio e o reconhecimento, entregando-se a observar, anotar e relacionar os eventos psíquicos. Hoje vemos expressões como: inconsciente coletivo, arquétipos e complexos, entre outros fatos psicológicos, assimilados e tratados de modo quase familiar na linguagem comum. De fato esses acontecimentos sempre existiram em nós, mas não eram de nosso conhecimento.

    O medo de Freud de perder a ‘autoridade’ e a cobiça de seus discípulos pelo poder, na figura principal de Ernest Jones, engessaram as descobertas psicológicas na neurose da verdade única. Dogmatizada, a Psicanálise foi aos poucos repelindo os pesquisadores que avançavam ao já estabelecido com receio de perder o espaço e o controle conquistado. Isso se refletiu até os dias atuais na Psicologia, que não conseguiu se unificar, por isso dizemos existirem Psicologias. Na academia construímos uma Psicologia ‘Frankstein’, ganhando em diversidade fora dos muros universitários e perdendo o registro dos achados pelos meios oficiais. Mas quem perde mesmo é o aprendiz, confundindo a fatia com o todo, já que ora seu saber navega por um aparato teórico como explicação para tudo, ora outra ‘corrente’ ruma suas ideias por um rio que nunca alcança o mar. E tudo isso por pura subserviência e como se fosse possível parar o movimento da vida com as mãos, alguns ainda seguem o padrão do medo e do poder, negando de a melhor parte ser a que escapa entre os dedos, como costuma ser o desafio de um saber mutante e sempre inesgotável no mundo do inconsciente maior.

    Enquanto isso boas novas emergiram das profundezas do mar nesses cem anos graças aos que não se submeteram. A ousadia se opôs à postura servil conduzindo o desenvolvimento do pensamento humano a dialogar com diferentes áreas a partir do campo do inconsciente. Estou me referindo ao inconsciente coletivo, o perene movimento da vida, o criativo, o que sempre será não consciente em sua maior parte.

    Com dignidade científica C. G. Jung conseguiu sustentar a provocação do entorno na descoberta de fatos psicológicos novos, suportando o sofrimento e a solidão de quem está à frente de sua época, enquanto colegas escolheram se agarrar aos galhos secos da razão. Postura essa de Jung que sempre o acompanhou, mas que se impôs fortemente em 1913[3] . No entanto, ainda hoje, aguardando um desenvolvimento maior da consciência, alguns dos temas levantados por Jung permanecem desconhecidos, aprendidos pelas beiradas, deixando muito a desejar quanto à aplicação que se vê por aí. Circunstância essa que lhe gera um lugar incômodo de obscurantismo, valendo salientar que o desconhecimento é nosso e não dele. Mesmo sem ser esse o intuito de Jung, foi obrigado na ocasião a criar uma ‘escola’, que denominou de Psicologia Analítica, pois em nossa conjuntura se costuma ‘classificar’ tudo para melhor absorver. Hoje entendemos bem o cuidado de Jung com o que se torna instituído ao ver no que se transformaram os Institutos com seu nome, em “carreirismo”, como classificou Marie-Louise von Franz[4] na entrevista a um jornal brasileiro.

    Mesmo entre os profissionais da área, ainda se ouvem falas sobre a dificuldade de entender a Obra de C. G. Jung, já que ele não se ocupou ‘de propósito’ em formatar catálogos para os fenômenos psíquicos, prendendo-os a conceitos fechados. Ele sempre soube de esses fenômenos serem dinâmicos por si só, portanto, o máximo que se pode fazer é descrevê-los em seu movimento, cuidando para mantê-los no contexto em que acontecem. Não podemos nos esquecer do mundo inconsciente ser vivo, tal qual a natureza que enxergamos lá fora. Por isso também não há roteiro para o processo de individuação, que é o acontecimento da vida em seu sentido de integralidade e desenvolvimento em cada pessoa, projeto esse que estamos todos incluídos, estejamos ou não conscientes disso. Também não há definição pronta para os símbolos que aparecem nos sonhos, visando uma interpretação causal e fechada. Estudamos uma série de sonhos de alguém e a partir das ocorrências da vida desse sonhador, mesmo que aja paralelos na história da humanidade para ‘amplificar’ o conteúdo onírico, o entendimento será sempre único. É desse modo que a ciência Psicológica deveria contemplar um olhar mais pela sincronicidade do que pela velha e conhecida ‘causalidade’, que a tudo reduz ao já conhecido. Marie-Louise von Franz expandiu essa ideia junto com Jung, ambos aprofundaram o diálogo com áreas como a Física, a Matemática e a Medicina, especialmente a Psicossomática. Um novo paradigma ampliou as ciências exatas a partir dessas pesquisas. A Literatura e as Artes em geral se beneficiaram também com inúmeros trabalhos de von Franz sobre os contos de fada e de Barbara Hannah na aplicação e estudo do método junguiano - imaginação ativa -, ainda não desenvolvido em sua potencialidade na prática atual da arteterapia.

    Enfim, há cem anos vem se construindo novos olhares para a ciência. E no século XXI se busca aprofundar ainda mais a descoberta de questões inconscientes, seja a área que for do pesquisador, sabe-se das influências desse sobre o seu experimento. A preocupação de Jung sempre foi a de ser a psique ao mesmo tempo o sujeito e o objeto de estudo da ciência psicológica, podendo fazer com que isso prejudicasse o caminho da Psicologia como ciência. Hoje vemos que muitos cientistas suspenderam a neutralidade e incluíram em seus experimentos a si, a sua situação de observadores, e se deparam com a existência do campo inconsciente – a manifestação do desconhecido que envolve a todos e a tudo – e se deram conta dos resultados científicos dependerem de como se encontra o campo perceptual pessoal. Também cabe a cada um de nós a consciência de que em toda a participação e interação influências imperceptíveis afetam os acontecimentos e o mundo das relações, isto quer dizer em última instância, não há e nunca existiu a posição de neutralidade.

[1]Texto escrito e divulgado no Blog “Movimento Junguiano” http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/ em fevereiro de 2013, marcando um século (janeiro de 1913) do início do afastamento de C. G. Jung do grupo psicanalítico, mesmo que a sua saída definitiva do cargo que ocupava na presidência da Associação Psicanalítica Internacional só ocorreu em abril de 1914. (Porto Alegre/RS – BRASIL).

[2]Psicoterapeuta de orientação analítica no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br

[3]Ano do rompimento da amizade, já fragilizada, de Jung e Freud, concretizado a partir da visão de libido apresentada por Jung no capítulo O SACRIFÍCIO, Obras Completas C. G. Jung, vol. V – Símbolos da Transformação, publicado pela primeira vez em final de 1912.

[4]Entrevista especial dada ao repórter Gilson Schwartz do Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno Ilustrada, em 02 de novembro de 1987, publicada no Blog “Movimento Junguiano” http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/




domingo, 29 de abril de 2012

Um olhar sobre o filme: ‘Um Método Perigoso’



Conceição Soares Beltrão[1]


Elisa Freitas Machado[2]


Flora Bojunga Mattos[3]


    O filme “Um Método Perigoso” (A Dangerous Method – 2011 - Canadá/Reino Unido/Alemanha) do diretor David Cronenberg, também o roteirista junto a Christopher Hampton, que se embasa em sua peça teatral “The Talking Cure”, apoiado no livro de John Kerr (A Most Dangerous Method), impressiona pela sua monotonia, explorando não só uma relação sado-masoquista de Jung com sua paciente na época - Sabina Spielrein - como também a cansativa e desgastada ruptura entre Jung e Freud.

    O cineasta nos priva da beleza da dinâmica da anima – imagem do feminino na psique inconsciente do homem – de Jung e especula uma relação triangular e extraconjugal, nos seus ainda não trinta anos, no início de sua carreira de psiquiatra, quando ainda experimentava o método de Freud.

    As cenas de sexo entre Sabina e Jung invertem a imagem da subjetividade – apenas fazendo menção numa das cenas vista através do espelho – confundindo as tomadas do grotesco e do conflito interno da paciente como se fosse real.

    Apesar de estar reunidos num mesmo trabalho: um talentoso diretor de cinema, o Amor (Eros) e o maior psicólogo do mundo – como Jung é nomeado no filme –; vemos mais uma oportunidade de mostrar a relação de Jung com o inconsciente fugir entre os nossos dedos. Von Franz, no filme “Remembering Jung”, fala do sofrimento de Jung diante das exigências do inconsciente e do conhecimento que dispomos hoje sobre a psique inconsciente, a qual emergiu dessa relação de Jung com o inconsciente.

    No filme, “Um Método Perigoso”, a questão central é a infidelidade (Jung/Emma) vivida com a ex-paciente Sabina. Essa temática se repete como já vimos em outro filme “A Jornada da Alma” (The Keep Soul) e em várias biografias sobre Jung. No livro Freud/Jung correspondência completa Jung escreve a Freud: “uma paciente que há anos tirei de uma neurose incômoda, sem poupar esforços, traiu minha confiança e amizade da maneira mais mortificante que se possa imaginar. Resolveu armar um torpe escândalo simplesmente porque me neguei ao prazer de lhe fazer um filho. Sempre procedi com ela como um perfeito cavalheiro, mas perante o tribunal de minha consciência por demais sensitiva não me sinto realmente imaculado, e é isso o que mais dói, porque minhas intenções nunca deixaram de ser dignas. Mas o senhor sabe como são as coisas – mesmo o que há de melhor pode servir ao diabo para a fabricação de imundície. (...) Meu relacionamento com minha mulher ganhou enormemente em profundidade e firmeza.”
[4] Meses depois Jung ainda escreve a Freud: “Tenho boas notícias a dar sobre meu problema com Spielrein. Eu vi tudo muito negro. Estava quase certo de que se vingaria, depois que rompi com ela, e só me surpreendi com a banalidade da forma que essa vingança assumiu. Anteontem ela veio à minha casa e tivemos uma conversa muito decente, durante a qual transpirou que o boato que corre a meu respeito não parte em absoluto dela. Foram minhas ideias de referência, bem compreensíveis nas circunstâncias, que lhe atribuíram tal boato, mas desejo me retratar incontinente. Além disso ela se libertou magnificamente bem da transferência e não sofreu recaída (...) discuti com ela o problema do filho, imaginando que falava em termos teóricos quando na realidade Eros se agitava sorrateiramente nos bastidores. (...) Possuído pelo delírio de ser vítima dos estratagemas sexuais de minha paciente, escrevi à mãe dela dizendo que eu não era o gratificador dos desejos sexuais da filha, mas simplesmente seu médico, e exortando-a a libertar-me da mesma. Tendo em vista o fato de que pouco antes a paciente fora minha amiga e gozara de toda a minha confiança, meu gesto foi uma autêntica safadeza que só com muita relutância confesso ao senhor como meu pai. Gostaria agora de lhe pedir um grande favor: que mandasse algumas linhas a Frl. Spielrein, dizendo-lhe que o informei de todo o assunto, e em particular da carta aos pais dela, que é o que mais lamento. Quero dar à minha paciente pelo menos uma satisfação: a de que tanto ela quanto o senhor sabem de minha “perfect honesty”. Peço-lhe mil perdões, foi só minha tolice que o envolveu nesta confusão. ”[5]

    A questão a ser abordada é a fidelidade, isto é, a fidelidade de Jung ao inconsciente como ele mesmo escreveu: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”, na primeira frase do livro Memórias Sonhos Reflexões, evidenciando a importância da dimensão inconsciente em sua vida. Discorrendo sobre a anima, Jung estende a questão até a problemática da bigamia, e afirma que: se não tivesse entendido a dimensão simbólica dessa realidade, ele teria sucumbido às forças obscuras do inconsciente, à semelhança de tantos outros, e como do próprio Otto Gross.

    A dimensão do Eros para Jung representa uma relação com o próprio inconsciente. Esse é o ponto fulcral, porém, esquecido nas especulações sobre a vida de Jung. Neste sentido, lamentamos o foco dado por essas produções, as quais marginalizam a possibilidade de existência do inconsciente. Infelizmente, em nossa contemporaneidade, o mundo simbólico ainda não encontrou lugar. Nesta perspectiva, cabe lembrar que Jung, quando questionado se haveria uma Terceira Guerra Mundial, afirmou que para não ocorrer uma Terceira Guerra Mundial seria necessário que cada um de nós recolhesse a sua própria sombra e isso exigiria uma relação ética, conectada com o centro da personalidade total, o Si-mesmo. Desse modo, urge a necessidade de cada uma/um de nós olhar para a sua própria sombra.



[1] Doutora em Letras, Psicoterapeuta de orientação Junguiana no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br


[2] Bailarina e Terapeuta Corporal de orientação Junguiana http://www.elisafreitasmachado.com/


[3]Psicoterapeuta de orientação junguiana no Espaço Arte-Ciência, mestre em Psicologia Social e da Personalidade, www.espacoarteciencia.com.br


[4] Burghölzli-Zurique, 7 de março de 1909, 133J.

[5] Im Feld, Küsnach bei Zurich, 21 de junho de 1909, 148 J.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

UFOLOGIA e a PSICOLOGIA ANALÍTICA


Flora Bojunga Mattos

Recebi convite para ser palestrante na II Semana de Ufologia em Porto Alegre com enorme curiosidade de saber como anda o estudo e a discussão sobre os fenômenos ufológicos. Essa foi uma experiência bastante singular, uma oportunidade de mostrar como nós, da Psicologia Analítica, nos inserimos em um assunto ainda hoje tão polêmico, como o da Ufologia.
Minha fala situou-se nos estudos realizados por C. G. Jung, em seu volume (X/4) das Obras Completas, intitulado “Um mito moderno sobre coisas vistas no céu”, no qual ele apresenta uma pesquisa vasta e interessante sobre como o ser psíquico humano lida com o tema da Ufologia. E segui: “Ele se dedicou por 10 anos, coletando relatos, dados, perseguindo a pergunta: ‘os discos voadores são reais ou simples produtos da fantasia?’ e em 1958 organizou os dados coletados nesse livro. Foi após 30 anos, em 1988, que a língua portuguesa brasileira teve acesso numa tradução feita pela editora Vozes.
Nós, profissionais da Psicologia, não nos ocupamos em falar da realidade física dos OVNIs, pois entendemos que esse é um campo específico do conhecimento e aqui devo estar entre estudiosos e pesquisadores do assunto. O que nos cabe é sugerir que a pesquisa siga adiante, pois o que Jung observou e continuamos a constatar também, é que há interesse do ser humano no assunto. Portanto, esse não é um tema indiferente, pelo contrário, mobiliza um grande número de pessoas no mundo. Mesmo sem conhecimento, as pessoas tendem a opinar sobre o assunto. Todas dizem algo, seja o que for, porque esse assunto não lhes é indiferente. Só isso já deveria nos motivar a estudar, porque mexe com as pessoas a ponto de haver uma probabilidade no ser humano do fato desejável de uma realidade concreta dos OVNIs em maior número do que o seu contrário.
Mas o que nos compete abordar é sobre o componente psíquico envolvido. Para Jung, mesmo uma pessoa com o pensamento extremamente racional, também para ela, a percepção sempre será acompanhada da fantasia. Por outro lado, uma fantasia, que de alguma forma está se desenvolvendo na psique inconsciente, pode invadir a consciência a ponto de criar ilusões e visões, e se projetar na realidade física.
A pesquisa explanada nesse livro por Jung contempla tanto um modo como o outro. Explicando melhor, a visão concreta de algo cria um mito, que acompanha essa realidade e, por outro lado, um conteúdo inconsciente profundo, que chamamos de arquetípico, também pode criar uma visão, que se manifesta tal qual uma realidade física. E o que é mais interessante é a terceira possibilidade explicitada por Jung, a qual denomina de coincidência ‘sincronística’. Ele aqui se refere ao seu conceito de sincronicidade.
Sincronicidade é algo que não lida com a causalidade, portanto é acausal, possuindo uma significação que une dois ou mais eventos, os quais acontecem no mundo externo e interno, isto é, no psíquico interior. Esta é uma visão singular formulada por Jung, pois nos mostra como um fenômeno físico pode se relacionar com os processos psíquicos profundos – os arquétipos. Posso citar alguns exemplos, entre eles aquele já tão conhecido do relógio que pára no momento de uma morte.
Antes de irmos mais adiante, gostaria de enfatizar que nós somos seres psíquicos totalmente dependentes da cooperação do inconsciente – dessa parcela psíquica que desconhecemos. Sabemos que a maior influência vem dessa camada desconhecida – inconsciente – e que é algo constante em nós, participando de todos os momentos de nossa vida. Mesmo que não saibamos, não percebamos, somos completamente influenciados/as por essa instância inconsciente que pode inclusive atrapalhar nossa atenção, nosso entendimento, e pode ainda, como disse Jung, até interromper a próxima ideia que estamos para expressar ou, ao contrário, contribuir para que percebamos algo além do já conhecido, trazendo ideias novas, novas soluções, propor atos criativos. Enfim, o que quero enfatizar é que a nossa razão, nossa maneira de pensar, de sentir, de perceber, está completamente submersa em nossas fantasias inconscientes, mesmo que não acreditemos nisso, essa influência inconsciente continua a atuar e, talvez, por isso mesmo – na certeza ilusória do domínio da razão -, por esse motivo, principalmente, a interferência do inconsciente pode ser ainda mais forte, maior, como um jeito, uma maneira compensatória de lidarmos com a vida.
Para a Psicologia, o que interessa é ‘como’ a psique lida com uma informação, seja ela advinda do mundo físico, seja ela projetada - como uma ilusão - pelo mundo da fantasia. Uma coisa pode estar na minha frente, mas se essa coisa não tem uma conexão comigo, com o meu ego, eu não a percebo. Ao passo que se algo é importante para mim de alguma forma, passo a criar uma imagem psíquica, uma imagem projetada fora de mim. Estou me referindo aqui à projeção psicológica.
Além desse modo projetado, posso reconhecer algo fora de mim, quando eu estabeleço uma relação (sincronística) com algo que possuo, sinto e vivencio em minha experiência interna. É assim que faço uma conexão significativa entre o que sinto e experiencio com o que percebo fora de mim, algo que me complementa, algo que forma uma só coisa, isto é, algo que está dentro de mim – em minha interioridade – e algo que está fora de mim – no mundo externo – são uma mesma coisa, uma só coisa, formam uma totalidade.
Jung também disse que o que chamamos de ‘parapsicologia’ é a psicologia do inconsciente, pois a psique que é expressa nos fenômenos paranormais nos apresenta a relatividade do espaço-tempo. Quis dizer com isso que o nosso funcionamento psicológico tem uma independência relativa da ‘lei newtoniana’ – da causalidade absoluta –, ultrapassando as noções de tempo e de espaço. Se não fosse assim era impossível termos percepções fora do espaço e do tempo. Sabemos que essas percepções existem, temos exemplos de clarividências telepáticas, de premonições,... são percepções não-espaciais, não-temporais. Isso nos evidencia que as nossas concepções de espaço e de tempo, sob o ponto de vista causal e racionalista, são incompletas. Então, já sabemos que há uma outra ordem para além de, acima de, em outra dimensão, que não existe a extensão espacial, isto é, que o espaço não existe e também o tempo não existe. Por isso temos que lidar com algo de nossa existência psíquica que está fora do tempo, do espaço, pois esses parâmetros são incompletos para entendermos a totalidade dos fenômenos de um modo unificado.
Como podemos explicar – usando o determinismo causal, o modelo newtoniano de mundo – que quando estamos profundamente interessados/as em algo, passemos a perceber constantemente o assunto de nosso interesse? Ainda, sem mais nem menos encontremos pessoas ligados a isso? E filmes, e livros, etc., tudo se constelando nesse nosso interesse com uma frequencia que nos causa espanto. Temos aí a presença da ‘coincidência’ com uma insistência notável. É certo que esses acontecimentos não podem ser explicados num sentido causal. Isso foi denominado por Jung de fenômenos sincronísticos, ou melhor, de sincronicidade. Foi como Jung conceituou essas ‘coincidências significativas’, as que aparentemente não possuem uma explícita conexão ou nexo físico observável.
Para Jung, ocorrências como aquelas de relógios que param quando uma pessoa morre, copos que quebram ‘espontaneamente’ em momentos em que há a manifestação de grandes emoções, entre outros fenômenos assim, formam os eventos de sincronicidade.
Concluindo, gostaria ainda de mencionar um sonho que Jung teve na época (1958) em que lançou o volume X/4. Este sonho está registrado no seu livro, digamos assim autobiográfico: MEMÓRIAS, SONHOS, REFLEXÕES (p. 279/280). No sonho ele notou que estava em sua casa e avistou, diz ele: “dois discos de metal brilhante em forma de lentes; iam em direção ao lago, por sobre a casa, descrevendo um arco de fraca luz. Eram dois OVNIs. Em seguida, um outro corpo parecia dirigir-se para mim. Era uma pequena lente circular como a objetiva de um telescópio. A quatro ou cinco metros de distância, o objeto imobilizou-se por um instante, e em seguida desapareceu. Imediatamente após, um outro chegou, atravessando os ares: uma pequena lente de objetiva com um prolongamento metálico que terminava numa caixa, uma espécie de lanterna mágica. A sessenta ou setenta metros de distância, parou no ar e me fitou. Acordei, tomado por um sentimento de espanto.” No meio do sonho disse que lhe apareceu a ideia: “Sempre acreditamos que os OVNIs fossem projeções nossas; ora, ao que parece, nós é que somos projeções deles. A lanterna mágica me projeta sob a forma de C. G. Jung, mas quem manipula o aparelho?”
Jung já sonhara outras vezes com as relações entre o eu e o self ou si mesmo, que é o centro da psique. Isso nos evidencia que as imagens inconscientes possuem a sua própria realidade, sendo o inconsciente o criador. Isto é, nossa existência real é a inconsciente, assim como é a sensação quando estamos mergulhados no sonho.
Para concluir, no livro das CARTAS III, p.54 (12.10.1956 p/ Mr. Barrett), Jung usa a “sábia frase”, como ele mesmo qualifica, do escritor holandês Eduard Dekker (1820-1887), a qual diz assim: “Não existe nada que seja totalmente verdadeiro, nem mesmo esta frase”.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Entrevista com Dieter Baumann, neto de C. G. Jung


Entrevista feita por Luciano Colella
- analista junguiano em São Paulo e
presidente do Instituto de Estudos de Psicologia Analítica

(Fonte: Jornal "Folha de São Paulo", 08 de junho de 1991)

"O que mais me impressiona em Carl Gustav Jung é a capacidade que teve de suportar os opostos em si mesmo". Decorridos 30 anos da morte de um dos pioneiros da psicanálise, completados no dia 06 de junho de 1991, o jornal "Folha de São Paulo" entrevistou Dieter Baumann, 64 anos, neto de Jung. Sendo neto ele o conheceu não como "o príncipe herdeiro do império freudiano", tampouco como "o velho sábio de Zurique". Em entrevista exclusiva, Baumann conta lembranças de sua infância, que revelam uma face íntima do avô.
Folha - Qual a primeira lembrança que você tem de seu avô?
Dieter Baumann - A primeira lembrança que tenho dele é de quando ele tinha 58 anos e eu 5 ou 6, acho. Eu e mais alguns meninos estávamos em Shafuza, em um grande jardim que era da minha bisavó, tentando fazer um condutor, um tubo, com as hastes de dentes-de-leão. Queríamos que a água corresse através da tubulação e tentávamos encaixar este longo tubo, de vários metros, na bica. Claro que não dava certo. A pressão da água expulsava o tubo.
Fizemos várias tentativas. Aí chegou Jung, perguntou o que estávamos tentando fazer e, quando nós explicamos, pegou o tubo, colocou-o dentro de um tanque que havia debaixo da bica, sugou pela outra ponta e depois que a água chegou, pôs a outra ponta do tubo para fora e abaixo do nível da água e a água começou a escorrer. Em outras palavras ele fez um sifão. Assim ele salvou a nossa brincadeira.
Folha - Isto é muito interessante, porque simbolicamente a água é associada com freqüência aos conteúdos do inconsciente e à energia psíquica.
Baumann - Exatamente por isso que me deve ter vindo à mente. Isto me leva a uma outra lembrança. Quando eu tinha oito anos, estava passando férias com ele em Bollingen e lá fora, perto da torre, ele tinha um sistema fluvial de rios em miniatura. Ele cavou uma região encharcada e encontrou algumas pequenas fontes. Escavou então pequenos canais por onde a água destas fontes pudesse correr. Como eram várias fontes, acabou formando um verdadeiro sistema fluvial em miniatura que ele manteve e cuidou por muito tempo. Marie-Louise Von Franz chamava essas atividades do Jung de "waterworks" (trabalhos com água). Uma outra lembrança também associada aos canais é de quando eu já tinha 20 anos. Eu o estava ajudando na manutenção deles. É claro que, às vezes devido à movimentação, a água ficava muito turva. Nesse dia, porém, havia um dos afluentes que estava com a água particularmente límpida. Esta água límpida ao entrar na turva criava um desenho muito bonito, uma espécie de nebulosidade, mas límpida. Então eu disse a ele: "Olhe para isto", e apontei-lhe o desenho. Ele olhou e disse: "sim, isto é influência" (influir). Estas lembranças levaram-me a perceber uma das suas características marcantes que era esta união do pensamento concreto e abstrato com o simbólico.
Folha - Jung continuou seu trabalho intelectual até o fim da vida?
Baumann - Bem, praticamente o último trabalho que ele escreveu foi o seu artigo em "O homem e seus símbolos" e isto foi cerca de dois meses antes de morrer. Lembro-me dele nesses dias, escrevendo no terraço da sua casa.
Folha - E sobre a relação de Jung com Freud, você se recorda de algum comentário que ele tenha feito?
Baumann - Lembro-me apenas de que ele me contou uma vez que, quando escreveu "Transformações e Símbolos da Libido" - posteriormente passou a se chamar "Símbolos da Transformação" -, ele sabia que este livro lhe teria custado a amizade de Freud. Ele tinha comentado isto com minha avó. Isso o desgostou muito, mas ele tinha que escrever aquele livro.
Folha - O que você lembra do interesse de Jung em relação à parapsicologia?
Baumann - Estes assuntos não lhe interessavam por si mesmos. O seu interesse voltava-se para o significado destes fatos, fazia parte de um interesse mais geral pelas relações entre o corpo e a alma. Em particular através da sua descoberta da sincronicidade, na qual, digamos a realidade física e a realidade espiritual se encontram.
Por exemplo, lembro-me de um fato muito interessante que ele contou que ilustra bem o seu tipo de interesse. Jung estava em Bollingen com Hans Kuhn. Estavam andando fora da torre, conversando. Jung teve um pensamento no qual concluía que o cristianismo não pode vencer o paganismo e vice-versa, e que ambos teriam que morrer para que se criasse algo novo que contivesse os dois e fosse além dos dois. Nesse exato momento encontraram uma cobra morta. Ela tentara comer um peixe muito grande e ficara sufocada. Assim o peixe (que é uma alegoria tradicional do cristianismo) matou a cobra, e a cobra (que é do paganismo) matou o peixe. Isto aconteceu em 1935, 15 anos antes de escrever o seu trabalho sobre a sincronicidade.
Folha - Depois de ter sido fundado o Instituto Jung, como ele via o movimento da psicologia junguiana?
Baumann - Sei que ele não se sentia muito contente que o colocassem num pedestal. Marie-Louise von Franz disse-me uma vez que Jung não queria fundar uma escola e nem ter seguidores mas sentia-se muito satisfeito se o seu trabalho pudesse estimular outras pessoas a se dedicarem ao seu próprio trabalho criativo.
Folha - Uma agressão a Jung que de vez em quando vem à tona é a que o acusa de um suposto anti-semitismo. O que você diria a respeito?
Baumann - Isto é terrível. Continuam sempre insistindo nisso. Existe um livro escrito por E. A. Bennet, "O que Jung realmente disse", no qual ele esclarece definitivamente toda esta questão. Assim, se alguém insiste nisto certamente não está de boa fé. Claro que Jung observou o nazismo como fenômeno psíquico. Posso dar um testemunho pessoal a respeito. Lembro-me de que quando estourou a guerra, no dia 1º de setembro de 1939, estávamos em Bollingen e fomos chamados por uns vizinhos que tinham um rádio, para ouvir aquele discurso demagógico de Hitler. Lembro-me de como Jung ficou profundamente indignado e irritado e expressou isso de um modo muito claro. Lembro também claramente de como ele, durante as refeições, comentava o que estava acontecendo na política e sempre se expressou de uma forma claramente antinazista. Sei também que ele ajudou muitos judeus na época. Ele fez um seminário na Alemanha, em 1935, no qual se lê, nas entrelinhas, claramente a sua posição contrária ao que acontecia.
Folha - A psicologia junguiana não estaria adquirindo uma dimensão cada vez mais escolástica?
Baumann - Sim, é verdade. Mas eu sempre vejo aqui e acolá pequenos grupos não-oficiais que se formam. Eu já dizia 30 anos atrás que a psicologia junguiana deveria ir para as catacumbas. Fui muito criticado por causa disto porque, por um lado, parece importante que seja difundida, mas quando se vê o uso que algumas pessoas fazem dela, é muito triste. Eu tenho o privilégio de poder me comunicar com vários pequenos grupos deste tipo. Creio que quando conseguimos estas trocas, não oficiais, sem pretensões institucionais, então teremos algo positivo. Mas creio que também quando há instituições as coisas poderiam ir bem se as pessoas envolvidas percebessem que isto é um compromisso com o mundo. Mas tão logo se acredite que esta instituição é uma coisa em si mesma, então isto vai mal.
Folha - O que mais o impressiona na obra de Jung?
Baumann Neste momento, digamos que é a capacidade que teve de suportar os opostos em si mesmo. Aceitando o sofrimento da guerra interna é que se cria a possibilidade de contribuir para a paz. Diria que um dos grandes méritos de Jung foi o de ter reintroduzido no Ocidente o pensamento antinômico, já que, se alguém suporta os opostos em si mesmo, permanece consciente, e assim, serve à completude. Senão, a outra metade é projetada no inimigo, dando início às guerras. Jung diz que se alguém tem um conflito profundo, o importante é tentar participar dos dois polos do conflito, e assim lentamente poderá vir à tona um novo símbolo que os reunirá, ou estará acima ou abaixo dos dois polos. É a lógica de alguém que renuncia à prepotência de querer apossar-se do mistério, pois, se se tentar simplificar as coisas, identificando-se com um dos polos, ocorrerá a dissociação. É exatamente quando se aceita a dilaceração do conflito é que o risco de uma dissociação é menor. Eu diria que a dilaceração é o oposto da dissociação.