O filme argentino de 2011, ‘Un cuento chino’ com roteiro
e direção de Sebastián Borensztein – inspirado em um relato esdrúxulo, no
entanto verídico e acontecido na Rússia em 2008[2]
- narra a história, também insólita, sobre a relação de um comerciante portenho
de vida monótona, fechado em si, mesquinho, amargurado e a intensa convivência
com um jovem chinês imigrante que leva para a sua casa e o ajuda na busca do
tio que mora na Argentina.
O personagem principal Roberto, dono de uma pequena
ferragem, é quem nos conduz na experiência de descongelamento do modelo de
pensar linear – predominante em nossa sociedade contemporânea ocidental – ao acompanharmos
o seu enfrentamento cotidiano com o inesperado encontro e a coexistência com o
chinês. O personagem coadjuvante Jun, no papel do imigrante asiático, nos
envolve no modelo oriental de se comportar e nos apresenta sem impor, com a
aparência de certa passividade, a possibilidade de ampliarmos a visão habitual,
a ponto de permitir a virada para uma atitude diferente de lidar com a vida,
principalmente no que diz respeito a dar mais espaço para o afeto.
No hábito de colecionar histórias inusitadas e de se
idealizar como protagonista nelas, Roberto não poderia imaginar que através
desse hobby construía, por uma vertente latente e silenciosa – de qualidade arquetípica –, um modo de agir que o
tiraria da rotina rígida e solitária que o prendia ao passado. Tal qual o
modelo geral da ciência, Roberto mantinha como única realidade a consciência de
uma tradição racional, embasando-se em acontecimentos de sua história pessoal, sem
o saber, referenciava a causa e o efeito, sendo justamente esse o questionamento
com que vem se deparando o novo paradigma científico difundido popularmente
desde a segunda década do século XX pela Física Quântica. No entanto, anterior
a isso, temos de considerar a experiência de C. G. Jung nos primeiros anos de
1900, testando e comprovando a abrangência e a materialidade de nosso psiquismo.
Ele nos provou e o mundo ocidental absorveu a existência do inconsciente coletivo como base da
psique na formação da consciência de todo o ser humano, conceito esse profundo
(arquetípico) e fundamental na
Psicologia Analítica que enfatiza a nossa relação e interconexão com a criação
como um todo. Através dessas perspectivas, da
Psicologia Analítica e da Física Quântica, podemos ampliar o conhecimento da realidade
considerando os eventos sincronísticos[3].
O modo de perceber a realidade se alarga da simplicidade do tratamento adotado
pela causalidade, de um evento ser a
causa de outro, para a complexidade paradoxal
e complementar, que se entenda como um conjunto significativo e conectado de
fatos, que nos conduz a seu sentido. Jung denominou de sincronicidade a esse modo de perceber acontecimentos acausais interligados entre si. A essa mesma
realidade o físico Capra nomeou de orgânica.
Os chineses há milênios olham os acontecimentos em conjunto, como um campo de
sinais que nos falam de um significado a ser evidenciado.
O personagem desenvolvido através do asiático Jun,
subvertendo a ideia pré-estabelecida em nosso contexto, nos possibilita descobrir
o modo de pensar sincronístico, que é
a maneira na qual podemos apreender da filosofia chinesa. Culturalmente a China
nos ensina a perceber a configuração do momento, o que possibilitaria o
alargamento de nossa consciência, mas ainda tendemos a nos prender aos
acontecimentos isoladamente sem alcançar o estabelecimento de uma conexão do
que ocorre ao redor do eu pessoal.
A partir do momento em que Roberto sabe que Jun é o
protagonista de uma daquelas histórias que colecionava e arquivava há anos,
amplia o seu conhecimento e a tensão é relaxada, constelando a possibilidade de
ocorrer mudanças na vida de ambos. Então a narrativa se encaminha para a
complexidade e deixa de lado a racionalidade plana dos acontecimentos bidimensionais, chapada no cotidiano, um modelo
rígido de pensar guiado por um antes
e um depois. É nesse instante que se abre
a probabilidade do raciocínio envolver a emoção.
No modo causal de pensar, além do movimento mental ser
linear: A causa B; B causa C; C causa D; e assim por diante; no geral tende a
separar os eventos físicos dos eventos psicológicos. A ideia prevalente até o
século XIX, por exemplo, era de que as causas físicas terem efeitos apenas
físicos, portanto as causas psíquicas, ou não visíveis, somente poderiam apresentar
efeitos psicológicos.
Atualmente nos permitimos fazer interações entre o
psíquico ocasionar um evento físico e vice-versa. Pelo menos essa tem sido a
discussão a que se propõe a medicina psicossomática, comprovando o fato de as
pessoas apresentarem sintomas e até doenças, sendo a manifestação orgânica uma
reação a emoções fortes vivenciadas, por exemplo, os desmaios, pressão alta,
asma, diabetes e até infartos, entre outros tantos acontecimentos que vão mesclando
o fisiológico e o psicológico. Ainda assim, a causa é vista antes do seu
efeito, prevalecendo uma ideia da linearidade do tempo, embasada no antes e no depois, com o efeito vir sempre depois de algo ocorrido. Nesse caso,
ou nesse tipo de medicina, ainda falta a visão da simultaneidade dos fatos no
tempo.
O importante a ressaltar é do filme UM CONTO CHINÊS[4]
se prestar à discussão desses dois tipos de pensar e privilegiar o fato de, mais
do que uma coisa ser o fator causador de outra, ser a abertura para ir além da
forma tradicional explicativa. A narrativa nos permite a possibilidade de
enxergar os fatos conjuntamente, dando-lhes um significado que interfere em um
dado momento na vida dos personagens. Exageraria até afirmar que o filme adota
o modo de pensar sincronístico, como foi sempre desenvolvido pela filosofia
chinesa – de juntar fatos e não separá-los –, provocando se buscar o sentido de
um acontecimento. Não se importa com a distinção entre os eventos psíquicos e
físicos (até porque nem sabemos onde um começa e o outro termina em verdade),
mas reúne sem distinção acontecimentos internos e externos, apresentados pela
narrativa do conto, pois de fato é desse modo que acontece na vida de todas as
pessoas, embora não tenhamos o hábito de percebê-las assim, no entanto, só assim
conseguiremos deixar emergir o sentido.
O ponto a salientar é de a vida estar repleta de
acontecimentos espontâneos e suas simultaneidades no tempo e ainda nos
prendermos estritamente a fatos explicativos, compartimentados em excesso, que
levam ao desconhecimento e empobrecimento do sentido. Num tipo de atitude
assim, abandonando inclusive a percepção de como nos sentimos em um dado
momento – pelo fato de não computarmos a emoção – deixamo-nos ofuscar pela
objetividade da razão, como se ela pudesse ser o centro norteador da compreensão,
então perdemos de captar o entorno e de fazer relações que nos levariam a trazer
um conhecimento mais amplo. A atenção e a concentração ao redor, incluindo os detalhes,
pelo fato de olharmos para os acontecimentos de nossa vida interior em conjunto
com os fatos externos que nos cerca em um dado momento e tudo o que nos for
possível abarcar de algo que possa estar relacionado, nos remeteria a seguir o caminho
de um sentido que se evidencia, mas que precisa ser reconhecido.
Para aprofundar o desenvolvimento da ideia sobre sincronicidade, a dica é ler as obras de
C. G. Jung, principalmente o volume VIII sobre SINCRONICIDADE: UM PRINCÍPIO DE
CONEXÕES ACAUSAIS, além do livro de M-L von Franz, ADVINHAÇÃO E SINCRONIDADE: a
Psicologia da probabilidade significativa.
[1]
Psicoterapeuta de abordagem analítica junguiana no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br, desde
2005 no projeto de CINETERAPIA, florabm@gmail.com
.
[2] Ver
relato no periódico Komsomolskaja Prawda
que traz a notícia da polícia Russa detectar um grupo de
delinquentes que roubava gado e o transportava via aérea. Num desses eventos as
vacas foram jogadas do alto ao vazio, afundando uma embarcação pesqueira
japonesa, numa verdadeira chuva de vacas, na costa russa.
[3]
Fatos espontâneos acausais que acontecem de modo simultâneo em um dado momento,
de qualidade arquetípica, e que
possuem entre si uma relação significativa e nos conduzem a um sentido.
[4]
Filme apresentado na sessão de CINETERAPIA do dia 19 de maio de 2015 no Espaço
Arte-Ciência, Porto Alegre/RS - Brasil.