domingo, 17 de março de 2013

                               A Totalidade do Ser[1]

Conceição Soares Beltrão [2]

Atualmente está em foco uma grande preocupação dos profissionais da área da saúde: o ‘estilo de vida’. Ele é considerado fator fundamental para se conseguir saúde e mantê-la em boas condições. Em razão disso, crescem os estímulos às atividades físicas, enfatiza-se uma alimentação boa e natural, ressalta-se a necessidade do lazer e do repouso. Constata-se, enfim, uma preocupação com o bom funcionamento do corpo para quem deseja ‘qualidade de vida’.

‘Ênfase no corpo’, contudo, insere-se num contexto mais amplo, pois vivemos num momento histórico no qual a valorização do mundo concreto, o mundo dos sentidos, encontra-se exacerbada. Paradoxalmente, tudo isso visa a longevidade, como se, desta forma, a ‘eternidade’ estivesse a nosso alcance. Pertence a essa realidade, a modulação do corpo através de métodos invasivos da medicina estética. Decorrente disso, surgem a cada dia novas técnicas para aperfeiçoar essa ‘estética do corpo’, tanto do corpo feminino quanto do corpo masculino.  A busca por se manter eternamente jovem lota as crescentes e numerosas clínicas de cirurgia plástica. Há um clima de mudar, de transformar o feio no belo! Mas será que o feio é o que vejo, ou o feio que vejo, em verdade, é o feio que sinto? A falta de sentido na vida, o vazio existencial, pode ser a feiúra projetada nas rugas que começam a surgir, nas ‘gordurinhas’ nas diversas partes do corpo, na indesejável curvatura do nariz, entre outras particularidades. Mais fácil é então se lançar na ilusão das intervenções da medicina estética do que se colocar frente a frente com o verdadeiro conflito e debater até entendê-lo, transformá-lo e integrá-lo à consciência, modificando desta forma a atitude frente à vida. Parece, pois, que nesse turbilhão de ‘alternativas externas’ fica mais fácil navegar no mar das ilusões estéticas do que enfrentar o que se teme enfrentar em si mesmo. Mas, sem o mergulho no mundo psíquico inconsciente, a insatisfação não cessa.

Apesar das fortes tendências contrárias, nosso modelo de ciência permanece preso a uma visão fisiológica do humano. Os profissionais da saúde cada vez mais se especializam e, nessas especializações, fragmentam a totalidade humana. O mote surgido na Antiguidade: mens sana in corpore sano, chama atenção para a unidade mente-corpo. Todavia, o atual enfoque restringe-se aos cuidados com o corpo, concluindo-se que se o corpo está saudável, a mente também assim estará! Essa é uma visão que ignora a existência da vida psíquica inconsciente. Como em nosso momento é a forma, o visual que importa, e como não vemos o inconsciente, ele acaba sendo ignorado, pensamos que ele não nos influencia, portanto, não existe! 

Não obstante, não podemos esquecer que somos uma totalidade. Somos uma unidade, o nosso corpo é parte do ser total que somos. Nosso ser envolve tanto a dimensão física quanto a dimensão psíquica, uma está conectada a outra. Se esquecermos uma dessas duas dimensões, nos tornamos vulneráveis. A obtenção da ‘qualidade de vida’ envolve tanto o cuidado com o corpo quanto o cuidado com nossa vida psíquica.

 Como Jung mostrou, nossa psique está longe de ser um bloco unitário. Nossa vida psíquica é uma pluralidade de vozes! Todas expressam, influenciam e impõem seus valores, fazendo-nos agir sem considerar a nossa própria vontade. A essas ‘vozes’ ou personagens internos, Jung denominou de Complexos de Tonalidade Afetiva. A partir da ‘Teoria dos Complexos’ de Jung, temos a possibilidade de conhecer a dinâmica psíquica e seu domínio sobre nós. Se intencionarmos uma vida saudável, precisaremos também considerar a nossa realidade psíquica inconsciente, como parte integrante de nós mesmos.

 Através do meu trabalho, como psicoterapeuta junguiana, diariamente constato a realidade psíquica inconsciente das pessoas que acompanho; manifesta-se no corpo no exato momento em que trabalhamos determinados conteúdos psíquicos trazidos à consciência através dos sonhos. Segundo Jung, deveríamos ser capazes de conectar o sintoma físico ao conteúdo simbólico inconsciente correspondente. Esse é o grande desafio, pois se o conteúdo é inconsciente implica dizer que não temos conhecimento de sua existência, dessa forma, como poder perceber sua influência e sua materialização em mim mesmo? Como conectar essas duas dimensões? Esta é uma das grandes contribuições que Jung nos deixou: a diferenciação, entre o eu e os conteúdos do inconsciente. Através da ação reflexiva podemos perceber a existência e a influência do inconsciente. No segundo momento devemos nos esforçar para identificar e sentir o inconsciente no exato momento de seu surgimento em minha consciência, isto é, quando tenta se materializar no próprio indivíduo. Precisamos saber, ainda, que nossa consciência é frágil e tênue, à semelhança de uma suave chama numa pequena lamparina, exposta aos eventos externos que a ameaçam. Por isso, este trabalho de conscientizar-se pressupõe estar sujeito ao esforço e à constância da vontade do eu para empreendê-lo. Nesta trajetória contamos com a ajuda do próprio inconsciente que constantemente nos envia cartas[3],  informando o que verdadeiramente está acontecendo em nós. Refletindo sobre os nossos sonhos, temos a chance de conhecer as características daqueles que ‘nos habitam’, reconhecer nas próprias ações determinado personagem. Para Jung os sonhos são relatos diários das condições psíquicas inconscientes do sonhador.

 Além dos sonhos, podemos conhecer os conteúdos do inconsciente através das visões, das projeções, além do trabalho com a imaginação ativa, técnica que Jung nos ensinou. Logo, precisamos considerar o inconsciente, como a verdadeira realidade a fim de, paradoxalmente, poderemos nos livrar de ações inconscientes e perigosas, originadas na negligência da existência do inconsciente em nós mesmos. Agindo dessa forma, considerando a inteireza do ser, o indivíduo tem a chance de estar favorecendo a qualidade em sua vida e interage, construtivamente, com as pessoas e seres que o circundam, visto que uns influenciam constantemente os outros.
 
[1] Texto realizado em 10/02/2013 e publicado no Blog  http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/
[2]  Psicoterapeuta de orientação Junguiana no Espaço Arte-Ciência www.espacoarteciencia.com.br
[3] Von Franz quando se refere o significado dos sonhos diz que eles são cartas diárias do Self para a consciência.

Bibliografia

Jung, C.G.: A Vida Simbólica; vol.XVIII/I; Editora Vozes; São Paulo, 1998.
________: A Prática da Psicoterapia; vol.XVI/I; Editora Vozes; São Paulo, 1981.
________: Presente e Futuro; vol.X/I; Editora Vozes; São Paulo, 1988.
Von Franz, M.L.: Psyche and Matter; Shambhala; Boston & London; 1992.
_____________: Reflexos da Alma; Editora Cultrix/Pensamento; São Paulo, 1997.

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