quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Refletindo Sobre os Cem Anos[1]


Flora Bojunga Mattos[2]

    Há um século, completado em janeiro deste ano, que a Psicologia marca sua posição definitiva na Ciência. Tenho como marco simbólico desse momento a atitude de Carl Gustav Jung frente ao grupo psicanalítico. Historicamente sabemos que um tanto de inquietação caracterizou sempre a amizade de Jung com Freud. Com o tempo não restou mais dúvidas das divergências serem maiores entre eles. Jung devia de enfrentar só as dificuldades na pesquisa psicológica em relação ao seu objeto de estudo – a psique –, já que verdades se impuseram a ele e desvelaram uma parte inconsciente coletiva que apresenta obscuridades bem maiores do que as que vinham lidando até então na Psicanálise, cismada da libido ser exclusivamente sexual, insistia do psíquico inconsciente ser apenas ligado à história pessoal. O grupo de Freud negava-se, terminantemente, a reconhecer a parte inconsciente coletiva, classificando-a de somente ‘resíduos arcaicos’ e não simbólicos. Atualmente sabemos da importância do campo coletivo inconsciente para a ciência como um todo, em seus vários aspectos.

    Devemos a Jung que, sem intenção de ser o pioneiro, seguiu o caminho do pesquisador em busca de desvendar o desconhecido, sacrificando a posição conquistada, abandonou o prestígio e o reconhecimento, entregando-se a observar, anotar e relacionar os eventos psíquicos. Hoje vemos expressões como: inconsciente coletivo, arquétipos e complexos, entre outros fatos psicológicos, assimilados e tratados de modo quase familiar na linguagem comum. De fato esses acontecimentos sempre existiram em nós, mas não eram de nosso conhecimento.

    O medo de Freud de perder a ‘autoridade’ e a cobiça de seus discípulos pelo poder, na figura principal de Ernest Jones, engessaram as descobertas psicológicas na neurose da verdade única. Dogmatizada, a Psicanálise foi aos poucos repelindo os pesquisadores que avançavam ao já estabelecido com receio de perder o espaço e o controle conquistado. Isso se refletiu até os dias atuais na Psicologia, que não conseguiu se unificar, por isso dizemos existirem Psicologias. Na academia construímos uma Psicologia ‘Frankstein’, ganhando em diversidade fora dos muros universitários e perdendo o registro dos achados pelos meios oficiais. Mas quem perde mesmo é o aprendiz, confundindo a fatia com o todo, já que ora seu saber navega por um aparato teórico como explicação para tudo, ora outra ‘corrente’ ruma suas ideias por um rio que nunca alcança o mar. E tudo isso por pura subserviência e como se fosse possível parar o movimento da vida com as mãos, alguns ainda seguem o padrão do medo e do poder, negando de a melhor parte ser a que escapa entre os dedos, como costuma ser o desafio de um saber mutante e sempre inesgotável no mundo do inconsciente maior.

    Enquanto isso boas novas emergiram das profundezas do mar nesses cem anos graças aos que não se submeteram. A ousadia se opôs à postura servil conduzindo o desenvolvimento do pensamento humano a dialogar com diferentes áreas a partir do campo do inconsciente. Estou me referindo ao inconsciente coletivo, o perene movimento da vida, o criativo, o que sempre será não consciente em sua maior parte.

    Com dignidade científica C. G. Jung conseguiu sustentar a provocação do entorno na descoberta de fatos psicológicos novos, suportando o sofrimento e a solidão de quem está à frente de sua época, enquanto colegas escolheram se agarrar aos galhos secos da razão. Postura essa de Jung que sempre o acompanhou, mas que se impôs fortemente em 1913[3] . No entanto, ainda hoje, aguardando um desenvolvimento maior da consciência, alguns dos temas levantados por Jung permanecem desconhecidos, aprendidos pelas beiradas, deixando muito a desejar quanto à aplicação que se vê por aí. Circunstância essa que lhe gera um lugar incômodo de obscurantismo, valendo salientar que o desconhecimento é nosso e não dele. Mesmo sem ser esse o intuito de Jung, foi obrigado na ocasião a criar uma ‘escola’, que denominou de Psicologia Analítica, pois em nossa conjuntura se costuma ‘classificar’ tudo para melhor absorver. Hoje entendemos bem o cuidado de Jung com o que se torna instituído ao ver no que se transformaram os Institutos com seu nome, em “carreirismo”, como classificou Marie-Louise von Franz[4] na entrevista a um jornal brasileiro.

    Mesmo entre os profissionais da área, ainda se ouvem falas sobre a dificuldade de entender a Obra de C. G. Jung, já que ele não se ocupou ‘de propósito’ em formatar catálogos para os fenômenos psíquicos, prendendo-os a conceitos fechados. Ele sempre soube de esses fenômenos serem dinâmicos por si só, portanto, o máximo que se pode fazer é descrevê-los em seu movimento, cuidando para mantê-los no contexto em que acontecem. Não podemos nos esquecer do mundo inconsciente ser vivo, tal qual a natureza que enxergamos lá fora. Por isso também não há roteiro para o processo de individuação, que é o acontecimento da vida em seu sentido de integralidade e desenvolvimento em cada pessoa, projeto esse que estamos todos incluídos, estejamos ou não conscientes disso. Também não há definição pronta para os símbolos que aparecem nos sonhos, visando uma interpretação causal e fechada. Estudamos uma série de sonhos de alguém e a partir das ocorrências da vida desse sonhador, mesmo que aja paralelos na história da humanidade para ‘amplificar’ o conteúdo onírico, o entendimento será sempre único. É desse modo que a ciência Psicológica deveria contemplar um olhar mais pela sincronicidade do que pela velha e conhecida ‘causalidade’, que a tudo reduz ao já conhecido. Marie-Louise von Franz expandiu essa ideia junto com Jung, ambos aprofundaram o diálogo com áreas como a Física, a Matemática e a Medicina, especialmente a Psicossomática. Um novo paradigma ampliou as ciências exatas a partir dessas pesquisas. A Literatura e as Artes em geral se beneficiaram também com inúmeros trabalhos de von Franz sobre os contos de fada e de Barbara Hannah na aplicação e estudo do método junguiano - imaginação ativa -, ainda não desenvolvido em sua potencialidade na prática atual da arteterapia.

    Enfim, há cem anos vem se construindo novos olhares para a ciência. E no século XXI se busca aprofundar ainda mais a descoberta de questões inconscientes, seja a área que for do pesquisador, sabe-se das influências desse sobre o seu experimento. A preocupação de Jung sempre foi a de ser a psique ao mesmo tempo o sujeito e o objeto de estudo da ciência psicológica, podendo fazer com que isso prejudicasse o caminho da Psicologia como ciência. Hoje vemos que muitos cientistas suspenderam a neutralidade e incluíram em seus experimentos a si, a sua situação de observadores, e se deparam com a existência do campo inconsciente – a manifestação do desconhecido que envolve a todos e a tudo – e se deram conta dos resultados científicos dependerem de como se encontra o campo perceptual pessoal. Também cabe a cada um de nós a consciência de que em toda a participação e interação influências imperceptíveis afetam os acontecimentos e o mundo das relações, isto quer dizer em última instância, não há e nunca existiu a posição de neutralidade.

[1]Texto escrito e divulgado no Blog “Movimento Junguiano” http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/ em fevereiro de 2013, marcando um século (janeiro de 1913) do início do afastamento de C. G. Jung do grupo psicanalítico, mesmo que a sua saída definitiva do cargo que ocupava na presidência da Associação Psicanalítica Internacional só ocorreu em abril de 1914. (Porto Alegre/RS – BRASIL).

[2]Psicoterapeuta de orientação analítica no Espaço Arte-Ciência, www.espacoarteciencia.com.br

[3]Ano do rompimento da amizade, já fragilizada, de Jung e Freud, concretizado a partir da visão de libido apresentada por Jung no capítulo O SACRIFÍCIO, Obras Completas C. G. Jung, vol. V – Símbolos da Transformação, publicado pela primeira vez em final de 1912.

[4]Entrevista especial dada ao repórter Gilson Schwartz do Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno Ilustrada, em 02 de novembro de 1987, publicada no Blog “Movimento Junguiano” http://www.movimentojunguiano.blogspot.com.br/




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