sexta-feira, 3 de outubro de 2008

EM MEMÓRIA: Marie-Louise Von Franz, 1915-1998


EM MEMÓRIA: Marie-Louise Von Franz, 1915-1998
Considerações sobre o adeus por Daryl Sharp*

tradução Conceição Soares Beltrão e Flora Bojunga Mattos, revisão de Susan C. Brown



“Para as pessoas presentes, quando a urna será colocada na terra, 80 lugares estão reservados nos assentos da frente na igreja. Se você puder estar na rua Lindenberger nº15 às 13h do dia 26 de fevereiro, nós caminharemos juntos para o cemitério.”

Esta foi a última mensagem que recebi antes de partir de Toronto para estar presente à cerimônia fúnebre da Dra. von Franz, planejada para acontecer na Igreja Protestante de Küsnacht, um subúrbio de Zurique. Esta mensagem foi enviada pela Dra. Bárbara Davies, assistente de von Franz nos últimos 14 anos e sua escriturária nos últimos 8 anos.(Em conseqüência da doença de Parkinson, Dra. von Franz, gradualmente foi perdendo a habilidade de escrever e caminhar.)

À rua Linderberger 15 está a despretensiosa e pequena casa onde von Franz morou por mais de 40 anos, a maior parte desse tempo em companhia de sua grande amiga e colega Barbara Hannah, a qual morreu em 1986 aos 95 anos. A casa está numa colina com vista para Küsnacht e o lago de Zurique. Eu fui convidado para ver o quarto, no qual ela tinha morrido na manhã de 17 de fevereiro. Havia uma cama de solteiro, uma escrivaninha com uma cadeira simples, uma poltrona grande e confortável, uma poltrona de couro, uma pequena mesa de cabeceira, uma mesa de leitura e uma estante abarrotada de livros do chão até o teto. Flores por toda parte davam a aparência de um lugar sagrado. Foi dentro deste quarto, me lembro, ela tinha me recebido, diversas vezes, há mais de 20 anos atrás.

Enquanto caminhávamos para o cemitério sob um céu sem nuvens, Bárbara Davies contou-me sobre os últimos dias de von Franz. “Ela se preparou muito bem para deixar esta Terra e falou, alguns meses atrás, sobre estar há tempo demais na ‘sala de espera’. Ela insistiu que não fossem usados procedimentos medicamentosos para prolongar a sua vida. Ela se recusou a ir para o hospital. Ela queria viver as últimas horas em sua casa com os amigos. Ela estava sem medo da morte e estava completamente lúcida até o fim. Apesar de a sua doença progressivamente debilitar a sua saúde física, sua mente estava cristalina até o momento de sua morte.”

Uma multidão considerável tinha se juntado na sepultura. As cinzas de von Franz estavam em uma pequena urna de cobre ao lado da cova no chão, bem ao lado da pedra principal que marca o túmulo de Bárbara Hannah. Dr. Gotthilf Isler, um amigo de longo tempo e associado ao recentemente formado “Centro de Psicologia Profunda de acordo com C.G.Jung e M-L von Franz” leu um breve elogio. O pastor oficiante então baixou a urna para o chão e Dr. Isler lançou uma pá de terra.

Prof. Theo. Abt, um membro fundador do novo Centro, colocou um pote de flores em cima da urna, então lançou uma pá de terra. Ele passou a pá para outra pessoa, que repetiu o ritual. Outros, inclusive eu, aproximaram-se, casualmente, e com a pá ou com as próprias mãos (principalmente as mulheres) juntaram terra e jogaram sobre a urna. Isto durou em torno de 10 minutos, em silêncio exceto por um choro baixinho.

A Igreja Protestante em Küsnacht é imensa, mas o mais impressionante é a sua simplicidade. Existem poucos símbolos religiosos expostos. Chamando a atenção estão as três janelas altas com vitrais de cristal fino em cada lado do altar, o qual nesta ocasião estava coberto por coroas e buquês de flores, enviados do mundo inteiro por pessoas e grupos junguianos. Não houve cerimônia, simplesmente, uma breve recepção feita pelo pastor, em alemão e inglês, aos mais de 800 presentes que lotavam o espaço: analistas, ex-analisandos, amigos, parentes e pessoas da cidade.

Houve três discursos. O primeiro foi em alemão pelo Dr. Isler, que relatou um número de sonhos que von Franz tinha tido, os quais foram importantes em sua vida. (Alguns desses aparecem em seu livro Os Sonhos e a Morte, que eu estava lendo durante o vôo). Ele estava sendo acompanhado por cinco excelentes músicos jovens da Orquestra Tonhalle de Zurique, que tocava o Quinteto Forelle de Schubert. Nos foi dito que este concerto tinha sido escolhido, especificamente pela von Franz, e recebeu aplausos bem merecidos.

Anne Maguire, Doutora em Medicina, analista junguiana de Londres, uma íntima amiga de von Franz por volta de trinta anos, encarregou-se do passo seguinte do funeral em Inglês. Ela também falou de sonhos e eventos compartilhados, enfatizando a função sentimento de von Franz, bem como a sua alta capacidade de insight e a função pensamento como uma espada afiada (=discernimento), seu trabalho pioneiro sobre a interpretação dos contos de fada e seus extensos escritos sobre a alquimia como um paradigma do processo de individuação. Ela fez menção especial para a Dra. Davies e as várias enfermeiras que tinham carinhosamente cuidado de von Franz durante seus últimos anos.

Dr. Roy Freeman do ETH (Instituto Federal Politécnico) falou brevemente de seu projeto de pesquisa que já tinha dados coletados, relacionando os sonhos e sincronicidade, graças ao generoso legado de von Franz.

Era sabido que von Franz não queria que ficássemos tristes com sua morte e, por isso, ela tinha providenciado uma celebração maravilhosa. O pastor disse-nos “todos vocês estão convidados para ir à Casa Paroquial, no espaço comunitário no outro lado da rua, para comer e beber e ficar em ‘alto astral’ por sua memória”.

O serviço terminou com uns poucos momentos de oração silenciosa. Ao sair da igreja, na soleira da porta, curvei-me para pegar uma caneta esferográfica Pilot preta. Eu tomei este achado como um sinal que eu deveria escrever sobre minha experiência (e usei aquela mesma caneta para os primeiros rascunhos deste relato).

Do lado de fora, as pessoas se juntaram para consolar umas as outras, saudando velhos amigos e fazendo novos. Esta convivência conjunta continuou na sala comunitária, onde um suntuoso buffet e um aparente interminável suprimento de vinho suíço reviveu nosso espírito e selou a ocasião com alegria. “Marlus” – como von Franz era conhecida pelos seus amigos – certamente estava lá. E eu estava muito feliz também.

Eu saí dessa reunião em companhia de Bob Hinshaw, um velho amigo e editor da Daimon Books, que tinha me enviado pelo correio eletrônico notícias pela manhã da morte de von Franz. Nós passamos a noite em vários estabelecimentos ao longo de Niederdorf (um bairro de vida noturna em Zurique), debatendo sobre ela e seu trabalho assim como nossos próprios questionamentos. Foi um apropriado fim para um dia que tinha iniciado com o coração apertado – uma confirmação que a vida continua. Durante a semana seguida ao funeral, eu tinha relutado com a idéia de ir ou não. Bob tinha me encorajado para estar lá, profetizando que eu não me arrependeria de fazer uma longa viagem, e ele estava certo.

Pessoalmente, eu sentirei falta dela profundamente. Ela me acompanhou durante meus anos de treinamento no Instituto de Zurique nos anos 70, e mais tarde ela se tornou um membro honorário muito bem quisto do Inner City Books. Próxima a Jung, o espírito dela me guia em tudo o que eu faço. Nós nos sentimos privilegiados de ter publicado cinco de seus livros, incluindo sua biografia de Jung. Apenas meses atrás, ela ofereceu-nos um sexto (O Gato: um conto de redenção feminina), o qual Inner City publicará no próximo ano.

Além da perda para a comunidade junguiana, nós devemos ser gratos por ela ter deixado excelentes trabalhos. O seu legado, certamente, será que ela apreciou na mensagem de Jung e fez o máximo para passar adiante. Além disso, porque ela não era apenas uma seguidora ‘cega’ (sem um pensamento próprio) de Jung, ela fez sua própria marca, pôs seu inimitável carimbo sobre a psicologia junguiana e sobre o que ela ensinou.

J. Gary Sparkes, analista junguiano em Indianópolis, na página da internet dedicado à memória e valorização de von Franz, expressou influência dela sobre ele como:

“Seu brilhantismo desafiou meu limite na melhor forma de aprendizado da habilidade analítica. Seu intelecto era penetrantemente afiado, contudo esta força era baseada no amor e não no poder. Assim sua exigência por competência nunca era sentida como pressão, embora ela pudesse ter a força de um furacão. Ela costumava dizer: Olha esta civilização. A sua história deve ser compreendida em profundidade para fazer justiça ao sofrimento do espírito humano.”

“Eu sempre senti que eu tinha sido introduzido, através do rigor, a uma excelência pela qual há tempo eu estava ávido de fome. Quem não ia querer realizar isto, e quem não ia querer cooperar? Foi a primeira vez que eu senti que a autoridade está a serviço da essência da vida. Antes de tudo eu recordo a intensidade e humanidade de seu espírito criativo, o qual queimou direto ao centro, inspirando-me uma reavaliação de tudo. Ela era exigente em função de uma resposta bastante analítica para as condições atuais. Este desafio é algo do qual eu queria fazer parte.”

Sim, e eu também.

* Estudos em Psicologia Analítica por Analistas Junguianos, Daryl Sharp, editor e redator geral

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